domingo, 18 de novembro de 2012

Arrumações

 

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“Ouvimos muito, mas ouvimos mal. Ouvimos do lado errado. (…) São buzinas graves, notas ruidosamente castrantes para qualquer decisão. E dúbias, também elas se tornam. As decisões.”

Olha o vermelho. Torce-se. Tenta tirar, do bolso apertado na ganga, o velho porta-moedas que fora do avô, puro couro, em arco, daqueles que num jeito macho deixa escorrer os trocos do esconderijo de um lado para o outro. Não tira agora o cinto, o verde pode chegar e as vigílias que o filam de trás buzinarem. Consegue finalmente. E o vermelho ainda paciente. Abre o vidro e fixa-a. Deixa o tilintar terminar na mão dela enquanto se esforça por lhe desvendar um sorriso na face. Não faz contas, mas ela sorriu. Ainda está vermelho.

A porta do café abre-se. Entra um ser que, por volta das oito da lua, se prepara para o primeiro do dia. E fica verde. E tem tempo de sorrir, mesmo antes de arrancar.

Há momentos na vida – quantos menos melhor - em que nos sentimos impelidos a fazer inversão de marcha, voltar para o lugar de estacionamento, sair e não largar o cinto de segurança. Arrancamos depois, engole-se: depois, logo a seguir ao menos infinito.

Azar ao quadrado é que no momento em que a coragem nos está prestes a invadir, alguém nos bloqueia as rodas, certo? A culpa nunca pode ser nossa, não, esse ónus não nos cabe respectivamente. Pois, parquear muito tempo tem muitos custos.

Essa indumentária da desconfiança que vestimos tantas vezes, que nos acalenta no insípido clima e nos cobre o semblante com nobres golas. Tem um gorro opaco ao ar que cria um microclima de dúvida mesmo junto ao escalpe. Arranca-nos da verdadeira dimensão da vida, retira-nos a plenitude de se amar e ser-se amado pela vida em si. Deixámos de sonhar, de acreditar e, numa espécie de demência consciente, de confiar. Dúbios dias. Porquê?

Ouvimos muito, mas ouvimos mal. Ouvimos do lado errado. Uma almofada de autocomiseração que não tapa, não abafa. São buzinas graves, notas ruidosamente castrantes para qualquer decisão. E dúbias, também elas se tornam. As decisões. E se não é fácil somos dúvida. Logo desconfiamos. Assim hesitamos. Grilheta invisível que nos acorrenta àquele lugar, tão só nosso, o parqueamento de onde assistimos a tudo: a todos os sucessos e derrotas alheias. Ali podemos comentar tudo e todos. E não valem espelhos.

Definindo “fácil”: acreditar que o difícil da vida não é o nosso impossível, aceitarmos a evidência de que somos senhores dos nossos gestos. As decisões são tiros de chegada. Já partimos há muito tempo.

in "Estás aí?"
(c) 2012 Manuel Almeida