domingo, 27 de fevereiro de 2011

Sangue Negro

missuamplu

Será, a vingança, a verdadeira e prática reflexão dos direitos humanos num cenário de guerra?  

Quando alguém grita bem alto, é bom que aqueles que é suposto reagirem, reajam.

No frenesim das consequências económicas cada um escolhe o seu peão. Enquanto escolhem a peça da especulação, do genocídio, da corrupção ou dos direitos humanos, vidas dão os últimos suspiros chorando aos céus e desejando que não tenha sido em vão tal dedicação e sacrifício por aquilo que é um direito e que alguns teimam em transformar em causa.

Há uma constante brisa de mudança nas nossas vidas, e aqueles que se escondem atrás de escudos humanos, vão coagindo, controlando e desviando essa energia, sublime e pouco audível, em benefício próprio. Enquanto assim for, ninguém tem que tomar posições públicas, pois a almofada tem a pressão suficientemente necessária ao efeito silenciador.

O problema inicia-se quando alguém, que nos é totalmente desconhecido e que o início ou fim da sua vida nos parece completamente indiferente, decide encher os pulmões de uma mistura explosiva de resignação com revolta, e grita sozinho do meio de um qualquer caminho, invocando aos céus e aos Homens, mudança e liberdade. Se tudo correr bem nesse momento, uma bala sobejamente dedicada à sua missão toca o fundo do coração do mártir e, assim que o berro faz ricochete na pessoa certa, inicia-se um efeito dominó de submissão. O ruído é tão intenso e ensurdecedor que os sentidos de oportunidade encontram-se, num ponto de loucura e de livre arbítrio, e a capacidade humana para o sacrifício se torna numa arma que parece ter munições incessantes que colocam qualquer ditador e qualquer governo autoritário entre a espada e a parede: Foge e desiste, ou terás de derramar sangue até às últimas consequências.

Foi sangue que escolheu. A ordem foi clara: o vermelho é para derramar, o negro é para proteger. É esta a mensagem para o povo líbio. Mas no Magrebe, quando uma luta se inicia, só acaba quando um dos lados se extingue. E esta luta é do povo. É um grito pela liberdade. Todos adivinhamos um fim, só não sabemos quando e quantos litros de vida deixarão de correr nas veias.

É neste momento de ebulição, que a temperatura do sangue faz ferver os depósitos de riqueza e colocam em risco o paiol do maior interesse árabe, que nos poderia manchar de crude a alma, quais aves e espécies marinhas a nadar na maré negra.

Se o sangue faz ferver a riqueza e ameaça fazer explodir os cofres dos que têm, há que arrefecer as almas. E rapidamente. Salvem-nos as armas, a violência, a insanidade naturalmente humana e o orgulho incondicionalmente hipócrita, de nos tornar a vida mais complicada que ela é, logo a nós que nada temos a ver com isso. Não queremos uma dezena de quilómetros a mais no excesso de velocidade das auto-estradas só para pouparmos o que alguém não desiste de lutar. Não queremos dispensar os objectivos para o orçamento da empresa só porque as filiais líbias estão no sítio errado.

Deixando as sanções para os governantes, continuemos os negócios nas filiais. Deixando os direitos humanos para as organizações não-governamentais terem trabalho na mesa – como se não houvesse pendentes nesta área – os governantes dizem-se atentos mas nada mais do que isso. Enquanto as ONG se ocupam a passar a mensagem, enquanto os limites de velocidade são reduzidos para contrabalançar a guerra, enquanto os jornais e televisão têm noticiário garantido, vidas no mundo árabe vão se entregando em prol de uma mudança. Uma mudança que tarda.

Será, a vingança, a verdadeira e prática reflexão dos direitos humanos num cenário de guerra? Na ONU o Conselho de Segurança festejou o Carnaval mais cedo e a maioria optou pela vestimenta de Pilatos. O embargo ao armamento foi uníssono mas já a condenação, de quem assassina indiscriminadamente um povo, deixou os seres supremos divididos. Há que manter as mãos bem desinfectadas.

A mistura de sangue e petróleo em cima da mesa redonda carrega um odor a culpa que as minorias não conseguem evitar. As mãos dos votos determinantes correm para os lavabos para raspar a pedra-pomes no sangue negro que se agarra à pele. Deixai o julgamento nas mãos do povo que a eles ninguém os julga. Pois não, só os matam a sangue frio.

Ao contrário de alguns países, uns que entendo pela prática de crimes semelhantes contra a humanidade, outros que não entendo e como tal só posso assumir que a razão seja o medo de represálias, ao contrário de alguns países, dizia eu, o microfone encostado à bandeira líbia, ecoava uma consciência de ideais humanizados deixando a cadeira vazia. Um grito de revolta em silêncio. Um grito sem medos e sem calculismos. A bandeira das quinas, tombada, lançou como sempre a confusão do disse que não disse – nada de novo para nós – até porque o carisma do general Kadhafi impressiona o nosso Primeiro – embora a memória o atraiçoe. É mais um «estranho caso de Sócrates» (*1).

Enquanto isso, o cenário continua, vidas lançam-se numa demanda sem bilhete de volta, mortes dão expressão aos clamores interrompidos pelos disparos.

Os coreógrafos ainda tentam pintar, em Tripoli, as ruas de paz, mas só o conseguem sem actores. O cenário é de guerra civil e não há duplos para as acrobacias mais arriscadas, a vontade é assumida com uma entrega que só o ser humano o pode fazer.

Tripoli, Líbia. É a única coisa que se consegue perceber naquela fracção de segundos: "ul-hoor…”. O projéctil rasga as fibras da camisa e um jorro de sangue espalha-se no ar acompanhado de uma última inspiração com voz de dor e agonia. Enquanto o corpo descende até ao chão outros largam também a vida acompanhando esta dança da morte. De todos se ouve gritos da mesma palavra "ul-hoor…!”. O atirador não demora a ser detectado e o ricochete de raiva faz-se sentir. A arma cai primeiro e faz estilhaçar o pára-brisas do jipe estacionado à porta do templo. O momento fica cravado na memória em câmara lenta. Enquanto os vidros se espalham no ar, o tejadilho reflecte já o corpo do mercenário que abandona o alto da torre arrastado pelo fraquejar do peito às três balas. Há medida que o estrondo ecoa e os ossos estalam na chapa quente, na rua as palavras terminam num grito de vitória: "ul-hoor-ree-yah!” (*2) 

M.A.

Não te abstenhas: www.amnistia-internacional.pt/index.php?option=com_frontpage&Itemid=1

«Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.»

in Declaração Universal dos Direitos Humanos

(*1) http://bookdemocracy.vendder.com/os-estranhos-casos-de-socrates

(*2) #alHurriyyah – fonética de الحرية (árabe: Liberdade)