domingo, 20 de fevereiro de 2011

Sozinho em casa

 

Estou cansado. Hoje sinto-me como ele. Não sabe, mas eu vejo-o daqui. Mas cansado ou não, sinto o compromisso da mensagem. É dele que falarei hoje, então.

Sentado à janela, colocas a alma do lado de fora e leva-la para a rua. Brincas com os garotos no parque, cumprimentas com um sorriso o dono da mercearia, e vagueias pelo quarteirão observando as vidas que lá passam. A cafeteira assobia e, lentamente, com todo o tempo do mundo, vais até à cozinha derramar o néctar que te mantém acordado na constante luta com os fármacos. Voltas à janela. Sorris. Sabes que lá fora estão bem, que os teus lutam pela vida e pelos seus. Não é do teu maior interesse atropelar-lhes a vida, não agora que te faltam as forças. Dá a sensação, que o tempo que eles tinham para ti, era o que tinhas para eles. Gastaste-o todo. Não sobrou nenhum para a viagem de volta.

Será que, por hoje o conhecimento estar ao alcance de um clique e a informação não ser sujeita a limites de velocidade, as gerações mais novas ficaram convencidas de que teriam a tal sabedoria ao seu independente alcance? Será que o que de mais valiosos os nossos pais e avós nos têm para dar, já nada signifique? O legado da sabedoria está a morrer numa enxurrada de falta de tempo que nos arrasta valores e afectos.

Todos dizemos que quando morrermos queremos morrer em paz, mas alguém anda a confundir as coisas. O conhecimento catalogado está para a experiência de vida como a paz está para a solidão. Não está, portanto.

Foi necessário o corpo de um idoso bater o recorde de tempo entre o óbito, a detecção e o funeral, para que todos ficássemos a conhecer nos noticiários durante dias seguidos uma realidade que já cabe nas memórias da nossa infância e que, tal como nós, desde aí vem a crescer.

Pais e avós devem munir-se de ferraduras, patas e cornos de animais para que, numa mágica carnavalesca, consigam convencer que se pode tornar poderosamente útil ter-vos por perto. Se o estilo do sábio ou curandeiro não se adaptar às vivências familiares tentem o quimono, pois no país mais velho do mundo a idade é privilégio nas famílias.

Já nas terras longínquas, onde o gado é voz assente, abrir a porta à palavra pode ser abrir a porta ao dia azarado. Nas aldeias impera o medo imposto por aqueles que a covardia lhes corre nas veias. Fecham-se e ficam-se. Um dia lá não aparecem no café. E outro dia. E mais outro. Depois o tempo aparece misteriosamente e a disponibilidade é total até ao dia da reunião onde se choram saudades. De quê? De quem? É saudade ou compunção?

Mas não só de um lado vive a vida. O perdão é, por vezes, coisa para figuras divinas. Passar anos a entender a educação como sinónimo de ausência, de droga ou de garrafas de whisky vazias, é mais do que suficiente para que o bom senso nos muna de compreensão suficiente para vermos um fechar de porta sem apontarmos o dedo. Depender de uma dependência pode cortar as saídas a qualquer um, e se a lei não protege, amanhã alguém verá as entradas bloqueadas.

Serão eles, filhos e netos, menos inflexíveis e desconfiados que aqueles, e para com aqueles, que os educaram? Há medida que o tempo avança e deixamos os filhos crescer, só um arar persistente da terra de mentalidades, cujo húmus se arrisca cada vez mais pobre, permitirá não lhes legarmos a etiqueta de «Inútil» para mais tarde nos estamparem no peito.

M.A.

Porque um coração nunca vem só… ou não deve vir: www.coracaoamarelo.org