terça-feira, 19 de abril de 2011

Os coágulos do mediatismo

missuamplu

“Qualquer evento, com vítimas ou não, incidente ou acidente, é suficiente para que no timing certo prolifere um mediatismo – arriscaria dizer, populismo(…)”

A hemofilia da sociedade em que vivemos está latente na ferida da hipocrisia social que teima em não cicatrizar ainda que haja cidadãos que se mostrem interessados em sarar tal assunto que, não obstante, é tomado de assalto pelo oportunismo dos meios de comunicação social e dos partidos políticos em campanha eleitoral.

Louvado seja o repórter que, para compensar tal falta de atenção e humildade por parte dos meios de comunicação e dos nossos quase governantes, fecha um dos próximos noticiários com uma reportagem sobre a vida de pessoas com este diagnóstico.

Tive a oportunidade de ver em primeira mão a reportagem, “Vidas por cicatrizar”, sobre a hemofilia e casos em primeira mão de cidadãos hemofílicos que lutam no dia-a-dia para perceberem que emprego será compatível com tal modo de vida, que não podem esquecer um medicamento fora de mão com o risco de ser fatal.

A casa num primeiro andar era humilde e cheirava a líquido de limpar o pó. A sala de sete por quatro iniciava-se com os dois cadeirões junto à lareira e terminava ao fundo com a tábua de jantar. Os fios já estavam estendidos no chão e a repórter sentou-se, olhando impacientemente, numa das pontas do sofá de napa castanha ainda a brilhar com a última intervenção. António estava sentado no cadeirão enquanto dava a entrevista. Já se percorriam dez questões quando começou a sentir um formigueiro no antebraço. Rapidamente abriu a gaveta da camilha ao seu lado direito, mas não havia nada lá. Gritou perguntando quem lhe teria pegado nos medicamentos. Durante este reboliço o repórter de imagem limitava-se a filmar e ela a relatar o que se passava.

O braço de António estava a começar a ficar negro quando a esposa chegou com um copo de água e uma carteira de comprimidos. Ajudaram-no a sentar-se. A repórter coloca-lhe a mão no ombro e pergunta:

– Sente-se melhor? – Fitando-o de seguida nos olhos – Como nos pode descrever o que sentiu? – Rematou orientando um olhar de comprometida.

Depois acordei. Há de facto atitudes na sociedade, das quais nem necessitamos de sair de casa para dar com elas, que me tiram o sono e provocam pesadelos estranhamente realistas.

Enquanto as equipas médicas e a logística na comunicação hospitalar se coadunam para se transformarem nos coágulos de um (sempre) lamentável acidente, as ajudas de custo autorizadas face às audiências despejam as equipas de reportagem para o local com um texto elaborado a partir de umas rápidas pesquisas na rede sobre hemofilia. Vejam lá que foram descobrir, ou melhor, relembrar que há um dia mundial de hemofilia. E como é de sangue que falamos, o odor das plaquetas atraiu as raposas-voadoras que estão à escuta com os sonares “caça-eleitorado”.

Não são suficientes as ainda longe de oito centenas de cidadãos registados na base de dados para adquirirem alocação de agenda nos tópicos do noticiário. Para que o dia mundial da hemofilia seja lembrado atempadamente, pelos meios de comunicação social, seriam necessários vários milhares em Portugal de forma a se poder colocar em causa a comunidade médica, científica ou o próprio sistema de saúde. Em alternativa, é estar atento a um acontecimento aparatoso que justifique a despesa de representação dos repórteres. Já para os políticos há que fazer as contas ao potencial em termos de eleitores votantes.

Pois é. Infelizmente o dia ia passar ao lado da maioria a não ser daqueles que vivem de perto esta doença. Infelizmente, isso não aconteceu. Não passou ao lado. Foi muito enunciado – embora pouco anunciado, mas pelas piores razões.

Um acidente, de preferência onde haja uma viatura a capotar e vítimas variadas, já se torna justificação suficiente para, se possível, um directo. Em rodapé colocamos um lembrete de forma a associarmos o dia ao acidente. Com a sorte do lado do furo, os hospitais não têm capacidade suficiente de recursos e pode-se deitar as achas para a fogueira.

Na outra ponta da sala de jogos os conselheiros políticos largam a quinta virtual para atender as chamadas mistério que declaram uma oportunidade sobejamente apetecível de fazer pré-campanha, até porque já há alguém a fazer contas por nós. E o que nos trazem? Ora, veja-se lá a surpresa quando nos congratulam com mais… mais promessas.

Qualquer evento, com vítimas ou não, incidente ou acidente, é suficiente para que no timing certo prolifere um mediatismo – arriscaria dizer, populismo – ansioso de uns minutos de uma espécie de celebração de momentos de glória, pintando a mensagem do cinismo redigida em forma de karaoke no mais moderno sistema de teleponto.

Não há hemorragia que estanque. Moralidades à parte, a verdade da mentira é que o interesse está no que interessa a cada um e o que cada um pode ganhar com isso. Os torniquetes do oportunismo rodam sempre no sentido contrário, neste país e em qualquer lugar do mundo. 

M.A.

Está na hora de ajudares a cicatrizar: http://www.aphemofilicos.pt/index.php?option=com_content&view=category&layout=blog&id=52&Itemid=172