domingo, 24 de abril de 2011

Mundo antónimo

ma - mundo antónimo

“Atracamos há tanto tempo no porto da boa vontade que o ferro das amarras já calcinou.”

Só quem não quer ver é que não vê as costuras nos ombros, os fios que mal prendem os botões do lado de fora e, mais descarado que tudo, os colarinhos para dentro. Completa, óbvia e totalmente do avesso.

Atracamos há tanto tempo no porto da boa vontade que o ferro das amarras já calcinou. Só mesmo cortando deixamos de ficar encalhados num lugar onde supostamente deveríamos apenas estacionar e repousar um pouco para recuperar energias. Se lançamos o machado da vontade e cortamos as amarras, umas quantas braçadas nos remos e ficamos a pedir aos céus que chovam motores ou que uma vaga nos reenvie de novo para junto do molhe. Ficamos à deriva a tentar perceber quem somos, quem queremos ser e, quando lá chegamos, lançamos âncora e esperamos que alguém nos dê como náufragos e nos atire uma bóia. Não admira o hálito a escorbuto dos dias de hoje.

(…)

Uma sociedade que se esconde por detrás de quintas virtuais, novelas e outras séries televisivas. Uma sociedade que não se ouve a si mesma, que não se olha ao espelho, que se abana de tanto querer fazer e não ter quem saiba aproveitar o seu potencial. Uma sociedade autista mas com aquilo que mais tem no seu interior quem o é: auto-estima.

Se os cromossomas estão trocados e enraizados neste corpo de multidão, que se move num caos vinte e quatro horas por dia, porque não há relógio para olharmos para o lado e dar uma palavra? Porque não trocamos um café ou maço de tabaco por um donativo para um sorriso? Tempo?

É falta de tempo com certeza. Quem inventou o dia com vinte e quatro horas não devia ter mais nada que fazer. Pois, tempo. Deve ser por essa razão que se prevê mais de dois milhões de espectadores a seguir um evento essencial para a humanidade e detalhes que podem colocar a vida do planeta em causa. Tenho a certeza que a estimativa será alcançada. Todos vão saber quem foram os convidados, a cor do vestido e quais os ingredientes do bolo da boda real.

(…) E a vontade é uma atitude exponencial. Seja a falta, seja a força dela.

M.A.

in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida