domingo, 2 de janeiro de 2011

Folhas Soltas

“Acreditem(...) Para lá dos números há muitos mais. Há quem tenha apenas o tamanho de casas decimais.”

Foi uma luz repentina que senti nas pálpebras. Quando o frio me tocou a pele só me apetecia gritar. Gritei, gritei até não poder mais. Mal conseguia respirar quando me enfiaram aquele tubo nas narinas como quem desentope um cano. Tinha jeito a doutora. Depois da confusão senti o calor do teu abraço materno. A tua voz era inconfundível e o teu cheiro… perfume de Mãe.

Ainda sinto a ignorância, o medo de não saber, a inocência de me culpar por tudo aquilo que não entendo. Foi quando me pousaste. Onde ias tu mulher? Onde foste? Porque me deixaste? Que fiz eu? Desculpa. Desculpa-me. Por muito força que os feixes de sol fizessem em ultrapassar as persianas, deitavam-se perante o nada que assolava o meu coração. Estava vazio e desprotegido. Poucas voltas deram os ponteiros assim que nasci e já te tinha perdido. Que descuidado que fui. Era uma folha solta à espera de ser escrita.

Mas cresci. Acolheram-me e deram uma nova estrada, uma nova história. Deram-me na adopção e eu dei tudo pelos meus pais. Depois, foi só dar tudo pelos meus filhos. Agora vão, tratem da vossa vida que não quero ser um atropelo. Agora que a reforma me enche de tempo dá para perceber que não há tempo para mim na tua agenda. Hoje é tudo a correr, não é? O tempo não dá para mais… não dá para pais.

Foi a tua prenda de Natal para mim, esta casa nova. Meu querido diário, acabei de acordar hoje nesta casa cheia de trapos como eu. O murmurinho das palhinhas do pequeno-almoço entorpece-me os pensamentos. Foi ontem que ele me trouxe? O seu filho deixou-lhe esta manta – disse sorrindo a menina enfermeira. Pois… agora está tudo mais claro. Onde estás tu? Quando me visitas? Tantos amigos velhos que ganhei. E onde estão os meus velhos amigos?

Há medida que as cortinas se despediam uma da outra, a luz ricocheteava, na bata branca, contra os meus olhos. A água salgada que escorria dos meus cavados olhos reflectia o grito que estava dentro de mim. Senti que o ar me faltava, mas não havia tubo. Senti que queria gritar mas o meu coração estava mudo.

Tanta história escrita em mim, tantas vivências enfim, tantas alegrias e tristezas como que peças de um puzzle que ficou assim. Hoje sinto que me arrancaram da lombada da vida que coleccionei. Sou sabedoria em linhas tortas num texto desconcertado. Não estarás arrependida minha mãe de sangue. Não vês que te falto no livro, meu filho? E assim me torno… numa folha solta.

Não, é apenas ficção no que toca à minha pessoa. Mas muita verdade desta existe no corpo de muitas crianças e na pele de muitos idosos. Os números pecam por defeito quando quatro dezenas parecem pouco. Não faltará muito até se criarem casas de abandono. É só uma ideia, não me levem a mal. Seria como que uma forma de evitar que a rua ou contentores do lixo fossem bancos de jardim para recém-nascidos. No verbo da sustentabilidade poderá ver-se como uma forma de aproveitar sinergias, juntando o recém-nascido à avó que agora começou a dar à família, mais trabalho do que seria de esperar.

Acreditem, os números que ouvimos a nos explicarem o abandono são apenas abreviaturas da vida real. Para lá dos números há muitos mais. Há quem tenha apenas o tamanho de casas decimais.

M.A.

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