domingo, 16 de janeiro de 2011

Tudo e Nada

Qualquer história que se preze necessita preencher nos seus primeiros parágrafos um conjunto de respostas que nos situam no tempo e no lugar, transmitem-nos o ambiente e as sensações que necessitamos para nos transportarmos para dentro do texto, para dentro da vida. Hoje talvez não.

O quarto de dez por dez estava meticulosamente arrumado e a cómoda de carvalho maciço dispunha de oito largas gavetas com relevos trabalhados como já não se fazem nos dias de hoje. Em cima, centrada no napron que se estendia simetricamente de lado a lado até ao chão, perdia-se a pequena televisão que tinham tirado da cozinha.

A cama estava tão perfeita que a estrutura de madeira escura confundia a sua idade, revelada pelos profundos veios, com o brilho do lustro deixado pelo último pano passado. Era um trono, de vestes brancas e imaculado, que a colcha de algodão cobria desde os pés até à cabeceira onde era abraçada pelo lençol verde de flanela.

Do lado esquerdo, uma camilha, ainda de pinho não tratado, servia de mesinha de cabeceira. Em cima aguardava um meio copo de água, tapado com um pires de fina porcelana, ladeado por meia dúzia de caixas de medicamentos.

O resto do quarto era limpo, perfumado e aconchegado por um imponente cadeirão de couro cujas pregas brilhavam no lustro da pele, digno de um príncipe. As pernas terminavam com um perfeito boleado exactamente apoiados nos centros dos quatro enormes círculos de cornucópias que o tapete de fibra espalhava do lado direito da cama.

A cama não se mexia, e não fosse a magra cabeça que saía da dobra do lençol, deitada sobre a mal amanhada almofada, nem se percebia haver ali vivalma.

Nada.

Abriu os olhos lentamente, e nada. Via e ouvia tudo, mas nada.

– Será esta a sensação de morrer? Será isto? Acordamos ainda no lugar e na posição que o corpo que nos deu vida se deu por vencido?

Lembrou-se das histórias de pós vida, das sensações de se flutuar, e tentou mover-se. Nada. O pânico engoliu todas as outras emoções e era em quantidade tal que transbordava nos olhos em forma de água salgada.

De repente, enquanto o brilho da televisão reportava umas centenas de vidas afogadas nas últimas cheias, viu o seu livro favorito em cima do cadeirão. A capa em mate preto e os traços de uma criança timorense na capa não deixavam enganar. Era o seu livro. Daquela posição não dava para perceber o título, mas sabia que o lia todos os dias e várias vezes. Era dos seus maiores prazeres na vida sentar-se naquela cadeirão, beber o seu chá e entregar-se ao decorrer das palavras.

– Como era mesmo o título? – pensou com a estranheza do ridículo lapso de memória. – Quando vem a luz? Quando me vêm buscar? Irei agora matar as saudades dos meus pais? - desejou.

Há medida que proferia as palavras, em tom de sussurro, ecoavam pelo quarto apenas breves gemidos. – Será assim? Já não ouvimos a nossa própria voz? Faz sentido – pensou. – Afinal se o nosso corpo desliga as suas funções só nos resta a alma para pensar e o amor para escutar o que nos rodeia. – concluiu, com a dúvida de quem deseja ser beliscado – Será?

Um novo gemido de quem grita por umas gotas de óleo acompanhava a dança solene da porta branca. O som das dobradiças tocou-lhe a memória e soube que alguém viria. A corrente de ar lançou as finas cortinas de linho em direcção ao perfume de torradas com compota de amoras e infusão de chá com canela. Depois um sorriso.

– Olá amor! Como estás hoje? – disse a senhora que vestia o seu meio século de pele bem tratada com um comprido vestido solto de um azul celeste.

– Amor?! Não vês que já cá não estou? – pensou incrédulo – Quem és tu bela mulher que me olhas com tanto carinho? Quem te sou, para me tratares por tão doce palavra?

Após pousar o banquete na espaçosa cómoda, dirigiu-se à cama. A brisa arrancava dos seus cabelos um odor familiar que criava um tornado de recordações que se tornavam dolorosas tonturas.

– Dói assim tanto lembrar agora? – lamentou-se.

Quando a ternura das mãos lhe limpou o suor da cara, um arrepio foi a única sensação física que lhe percorreu ponta a ponta do corpo.

– Estou vivo?! – pensava assustado.

– Deixa-me pôr-te mais confortável. – Falou ela com um volume que dava perfeitamente para ouvir no outro canto da divisão. Colocou mais uma almofada e, com um lanço de força, sentou-o. O solavanco aterrorizou-o, ao ver-se de repente mudar de posição, sem que tenha conseguido colocar qualquer músculo a ser solidário com o esforço da mulher.

– Trouxe-te o chá. – Avisou ela inclinando a cabeça perpendicular à dele e deixando os longos cabelos lhe tocarem as mãos. Ele tentou – desejou – agarra-los, mas fugiram junto com ela.

Na viagem de retorno o tabuleiro ficou como que suspenso no ar e ela fitou os olhos na porta aberta. Da posição em que a cama estava ainda não se via ninguém, mas reparou que ela assentiu com a cabeça. – Entre Doutor, entre. Ele está acordado e vai gostar de o ver. Não vais, amor? – disse sorrindo, como se não o soubesse dizer de outra forma.

Amor… outra vez. – pensou. – Será que vais dizer o meu nome? Ser-te-ei eu tão querido assim? – esforçava-se por se fazer entender. – E este homem que tratas por doutor? Que faz ele aqui a destoar de todo este cenário com esse maleta acabada de comprar? – ouviam-se gemidos.

O médico, de gravata de seda rosa, pousou a mala aos pés da cama. Um breve clique deu à mala a abertura suficiente para, sem sequer olhar, tirar um aparelho enquanto olhava para mulher. – Com que então chazinho e torradas. – sorriu simpaticamente.

Olhou de seguida para a magra figura e pendurou aquilo nas orelhas. Ele sabia que tinha algo de estético mas o nome não lhe vinha à memória. – Doutor… tire-me daqui por favor. – suplicou. – Se o chá me fizer mexer e ouvir o som das minhas palavras, eu bebo. Bebo o que vocês quiserem. Mas por favor… – os seu gemidos foram então interrompidos pela doce voz.

– E hoje amor, lembras-te de mim? – disse ela com um novo sorriso, desta vez tocado por duas cintilantes lágrimas que lhe corriam no rosto. A gota lacrimal ultrapassava cada ruga com a vontade de quem deseja vida, de quem deseja algo, de quem deseja uma palavra que seja, um sinal.

Ele gemeu. Não se sabe o que disse. Ela olhou o doutor enquanto ele tocava a fria ponta do estetoscópio na fina cobertura de pele antes do osso peitoral.

– Vê, ele disse que sim, não foi? – perguntou retoricamente o médico com o olhar frustrado.

Quando uma das lágrimas dela caiu naquela mão trémula, rebentou uma queda de água no rosto dele. Parecia um sorriso, junto com tudo aquele borbulhar de emoções. Eram as memórias de ontem, as memórias de hoje, o parque, o beijo, o chá, o livro. Gemeu. – Olha para mim, amor. – gemia alto, imitando um grito de guerra. – Sei quem és e quero-te tanto dizer que te amo. Diz-me só o meu nome, será a magia de o saber que me irá fazer mover. Eu abraço-te já, espera só um pouco. – continuava, ansioso e emocionado com todas aquelas sensações, em forma de memórias, acabadas de chegar.

A unha pintada, de um vermelho perfeito, acompanhou o polegar a secar a humidade que a gota lhe tinha deixado na mão. Secou. De repetente, nada. – Diz-me mulher. Quem és tu e quem te sou eu? – pensava ele, novamente incógnito naquele cenário.

Ela olhou-o no fundo dos olhos há medida que o doutor lhe baixava a camisola de pijama. Pelas negras pupilas, entrou-lhe na alma e procurou ouvi-lo. Mas nada. Já não havia nada. Apenas Alzheimer.

M.A.

Não te esqueças. Aproveita agora, enquanto te lembras: http://www.alzheimerportugal.org/scid/webAZprt/defaultCategoryViewOne.asp?categoryID=903