domingo, 6 de fevereiro de 2011

Pequenas vidas

 

Uma vez convenceram-me a não o fazer. Desta vez não. Desta vez eu escrevo. Porquê esconder o que nos indigna e o que nos revolta? Se para alguns é o texto errado, paciência. Afinal de contas, errar é humano. Errar é humano… se bem que, no fim do que tenho para escrever, fique com algumas dúvidas disso.

Nas conversas de autocarro vão os juízes perfeitos com acusações que vão da maior abrangência ao pragmatismo mais frio que se transforma em penas de condenações implacáveis. Quando a viagem termina, a conversa acabou e a paragem adia a sentença para uma próxima sessão. Nem os tribunais por vezes conseguem ser tão letais. Até a condescendência pelo sofrimento de um adulto pode suspender uma pena, por mais pequena que seja.

A idade da adolescência da rapariga, sentada no sofá, vai descaindo enquanto as mãos, de quem lhe ensinou a andar de bicicleta, lhe apertam o pescoço. A queda livre do corpo de dois anos do rapaz inicia-se em direcção ao riacho. Num qualquer apartamento, mais afastado, o frio da noite já deixou de ser desconfortável. O progenitor enraivecido com o irritante choro tratou de que a bebé não sentisse mais frio, de que não sentisse mais nada.

O vermelho que escorre nas paredes do quarto é só um detalhe forense. Só isso.

Nascem para o que não conhecem, sentem o que não entendem, confundem-se entre o prazer do leite no peito quente e a sensação estranha de um formigueiro que anestesia durante os primeiros dez segundos que se seguem à primeira pancada.

Algumas crescem mais um pouco e, num mundo que entendem como normal, desaparecem nuns repentinos e assassinos segundos de terror que se transformam numa viagem alucinante à incógnita da inocência, como que uma droga injectada pela adrenalina no seu máximo, que traz a embriaguez que se pode desejar para um momento como esse.

Outras crescem mais e são educadas no reino da insignificância, cobertos no manto da violência que os aconchega e alimentando-se do mal, para se tornarem seres nutridos de loucura suficiente que plante nas suas mentes doentes a possibilidade de fazerem aos seus futuros filhos aquilo de que não conseguiram ser vítimas.

O corpo da bebé está perdido nos lençóis da cama humedecidos de sangue. No riacho, a água chapinha com a queda e os dois anos não são suficientes para se erguer e poder respirar. Os pulmões incham mas já não há dor. No sofá, o ar da idade da irreverência perde-se na devassidão da sala. Está quase a acabar. Os olhos estão inchados, cobertos de raios de sangue e incrédulos das covardes mãos que lhe sugam a vida e da cara que chora nos olhos dela como que se o acto fosse do mais cínico e hipócrita amor.

São algumas vidas – ou mortes, conforme se sintam mais confortáveis a ler – entre muitas outras que sentem que não deveriam ter cá vindo, porque só termina assim quem não é merecedor da vida. Transferem a culpa para si mesmos nos últimos segundos que lhes restam, seja pela ignorância da inexperiência de vida, seja pela grandeza da capacidade inata que as crianças têm de perdoar.

Errar é humano? E nascer? É humano ou é errado? Para aqueles que acreditam que o dia do juízo final irá chegar um dia e para todos, esqueçam. Esse dia chega todos os dias, e para muitos, mais cedo do que seria de esperar.

Como explicar a uma criança que existem vidas assim? Nos dias de hoje vai-se tornar difícil convencer um filho que não é uma sorte mas sim um direito de qualquer criança, o facto de ser feliz, de conhecer das mãos dos pais apenas carinho e das suas bocas a verdadeira educação.

Dizem que Deus escreve direito por linhas tortas. Grandes feitos devem estar para acontecer, tantas são as linhas escritas em letras miúdas que mal se percebem e tantos são os erros que não há acordo que os torne válidos.

Errar será mesmo humano? Ou seremos então deuses e certamente loucos?

M.A.

Aqui só leste alguns casos. Está atento a quem atenta.

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