domingo, 20 de março de 2011

Infância amarga

“Durante este mês decorre o Festival do Chocolate em terra de Óbidos. Os visitantes mais esperados são as crianças(…) Será que lhes vão contar a história toda? E tu?”

E inferem-nos uma pausa. Um momento de prazer a saborear.

Se tivesse memória, a prata envolvente estaria manchada de vergonha e o perfume adocicado azedaria em contacto com o olhar guloso de quem sabe mas não quer saber. A saliva, segregada ao toque, faria vomitar ignorância num grito gregoriano que ecoaria pelo silêncio da Europa. Mesmo que tentássemos insistir, a cada luxuosa mordidela, seríamos assaltados por alucinações de tráfico infantil, raptos, choro e gritos de dor. Sentiríamos que levemente trincávamos a inocência de uma criança, a cada quadradinho devorado.

Mas o chocolate não tem memória. E parece-me que nem nós.

Enquanto nos estádios olímpicos se passam testemunhos num trabalho em equipa para vencer a meta desejada, neste negócio os grandes fabricantes mundiais fazem acordos na secretaria, negando o evidente, e passam responsabilidades como se fosse possível assim dormir melhor. Obviamente que isso não resolve a insónia dos responsáveis, a não ser obviamente que as plaquetas da consciência e os glóbulos escrupulosos estejam, no sangue, abaixo do saudável.

Raptos e campanhas de angariação de pais clientes, em que os convencem à venda dos filhos por tuta e meia e por tempo indeterminado, leva estas crianças a uma viagem sem retorno, deixando-as perdidas num abandono, que termina com a companhia forçada de traficantes. Vêm-se afastadas das famílias e do mundo para chegarem às mãos da Escravidão que, ao que parece, e pela inoperância do resto do mundo em relação a isto, deverá ser uma espécie de sonho de qualquer ser humano e, até quem sabe, o maior desejo de uma criança.

No conto de fábulas dos negócios das trevas, a Escravidão é uma amiga, embora ditadora, que tira as crianças da monotonia da educação, afastando famílias e escolas. A Escravidão dá um estatuto que muitos adultos não conseguem durante uma vida inteira, torna a infância uma verdadeira fonte de rendimento e as crianças altamente produtivas. O rendimento que estes trabalhadores de palmo e meio usufruem, por exemplo, nas plantações do petróleo da gulodice, o cacau, é tão apetecível que se sentem felizes por ser amigos desta amiga de todos Nas lendas escritas, nos estatutos destas indústrias, a Escravidão é alguém que existe mas não se vê e, como tal, não se sente. A Escravidão é fixe. Só pode ser. A infantil então é do melhor que pode haver. Pena que os nossos filhos não tenham acesso a tal nível de vida.os tempos.

E as sortudas crianças que têm a felicidade de encontrar esta oportunidade, deverão pensar que se não fosse tão bom, alguém trataria de enforcar a Escravidão. A Europa, esse grupo de estados importantes de países da esfera que querem ser grandes, e as pessoas que lá vivem, tratariam de fazer os possíveis e impossíveis para acabar com ela, a Escravidão. Quando há violação de direitos humanos, esses senhores não perdoam. Mesmo até, tratando-se de crianças.

A Escravidão só não gosta de rebelião, preguiça e fugas, tratando esses temas severamente. O que mais me faz arrepiar é saber que, de vez em quando, o produto da escravidão de que são vítimas, lhes é dado a provar e, obviamente, elas deliciam-se. Que criança não se delicia com um doce pedaço de chocolate? A inocência é linda. Que adulto não se delicia com tal ignorância.

Um milhão e meio de toneladas na Europa mais outro tanto de “outro lado”. Uma dezena de anos transforma um acordo num pergaminho de incompetência, hipocrisia e cinismo. Mas outros pergaminhos lustrosos se podem juntar ao portfólio como, por exemplo, as respostas dos fabricantes que deixam claro, com palavras simples para qualquer leigo, que as plantações não são posse das empresas produtoras e que, como tal, declinam qualquer responsabilidade. Declinar. Esta palavra tem efeitos de facto inimagináveis.

Eu declino, tu declinas. Nós ignoramos, vós declinais e as crianças que sofram por isso. Para que outra coisa cá estão?! Para servir o mundo, pois então. Para servir o raio que os parta!

Contentores atracam nas docas, ostentam vergonha e desumanidade. São distribuídos pelos fabricantes que fecham os olhos a tal odor. Distribuem-nos pelas prateleiras de toda a espécie de superfícies comerciais e milhões de mãos os atiram para os carrinhos de compras. Tantas mãos. Talvez assim a culpa se dissemine.

Vamos lá. Ignoremos. Façamos de conta que de nada sabemos ou então, melhor ainda, usemos a desculpa mais velha do mundo. Aquela desculpa que enquanto os nossos filhos são crianças passamos a vida a dizer-lhes que isso não é razão: Ora. As outras pessoas também comem, porra!

Durante este mês decorre o Festival do Chocolate em terra de Óbidos. Os visitantes mais esperados são as crianças que podem contar com workshops que explicam o processo de fabrico do chocolate e de onde vem. Será que lhes vão contar a história toda? E tu? Felizmente que sugar o suor de uma criança numa barra de chocolate não é considerado canibalismo, certo?

M.A.

Revolta-te agora e faz uma “manif”: http://sic.sapo.pt/online/video/informacao/historias-do-mundo/2010/4/chocolate-amargo-trafico-de-criancas-e-trabalho-infantil-nas-plantacoes-de-cacau-na-costa-do-marfim2.htm