domingo, 15 de maio de 2011

Conta-gotas

ma - conta gotas

“A não tomada de atitude (…) Não acontece por acaso. Não acontece por não haver tempo. Não acontece, simplesmente isso.”

A estrada não era muito sinuosa e o sol brilhava sem aquecer demasiado. A manhã estava de facto amena e perfeita. Sem querer sentir algum tipo de apreço pelas áreas ardidas, a mistura do castanho com o verde forte, que devolvia aos céus a luz intensa, dava um ar claramente rústico aos montes que desenhavam a paisagem. (…)

Na sala de espera, as duas encostadas uma à outra aguardavam as notícias com uma ansiedade que desgastava cada músculo e cada osso de forma impiedosa. (…) O rapaz entretanto já estava fora de perigo.

As plaquetas viajavam pintando no tubo uma estrada vermelha em direcção à dádiva. A sala era ampla e os tectos altos. O chão sussurrava a desinfecção que o cobria. Cerca de oito batas brancas caminhavam em passadas calmas numa ida e volta às longas cadeiras com reclinação de encosto. As agulhas eram introduzidas com um profissionalismo de invejar: “Vai respirar fundo agora, está bem?”.

O abalo do choque ecoou em forma de sucessivas pancadas tremendamente fortes e a cabeça empurrada violentamente para trás e para a frente enfiou o volante na traqueia enquanto a chapa rasgava as pernas. Numa fracção de segundos (…)

- “Pai?! Que se passa?” – respondeu assustada ao levantar-se repentinamente e levantando os cabelos longos para trás da nuca.

- “Não te vou poder ir buscar. Tive um acidente. Mas…” – foi interrompido pelo pânico dela.

(…)

No fundo do corredor surgiu uma bata verde. As lâmpadas fundidas não deixavam reconhecer o médico. Os corações batiam e as glândulas lacrimais não tinham descanso. Quando as duas quase partiam os ossos das mãos uma da outra, a luz iluminou-lhe a face. (…)

Todos os dias, polícia, bombeiros, INEM e outras entidades entram numa correria constante em direcção a locais de acidente. A estrada é, para os distraídos e para os atentos, uma roleta russa, uns dias mais, outros dias menos. Só a sensibilização e a formação cívica podem diminuir estes números, mas o factor sorte é algo imprevisível. Um acidente é um acidente e, se o é, é porque não podemos evitá-lo. É um acaso. Pode acontecer, pode não acontecer. Não o controlamos de facto.

Enquanto vidas se perdem e outras esperam não se perder, existem as que ainda se encontram. A dádiva de sangue não é um acaso. A não tomada de atitude em relação a esta necessidade, a esta causa, também não. Não acontece por acaso. Não acontece por não haver tempo. Não acontece, simplesmente isso.

No avesso da estrada de asfalto, a estrada da vida tem uma saída para a esperança. Se, por um lado, não podemos evitar sozinhos que sangue se derrame, por outro, podemos equilibrar a balança. Isso não é um acidente. É uma decisão. Somente isso. É a tua decisão.

E tu, o que decides hoje?

in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida

Decide bem. Decide já.

Porque há histórias que não são ficção.