domingo, 19 de junho de 2011

Salitre

missuamplu

“O que nos vai deixando descansados, e não nos atira para os trilhos onde se veste um luto sem luz, é que estas coisas só acontecem aos outros… não é?“

Transparente. Sou transparente. Há medida que me empolgo neste lugar quente, formo o rio que me nomeia, o lapso em que me transformo, o sabor que me ateia. Não me conformo.

Agora, que me afirmo, que me sinto libertar, os ponteiros do corpo assinalam a partida. Saí. Com esta multidão de mim, que nasce e que me empurra, não preciso de força para o impulso, o toque para lá da minha aventura.

Começo a cair lentamente a uma velocidade frenética, colada à pele deslizante do teu rosto, salgada, nascida dos teus olhos agora tristes. Essa dor derrapante em que tudo o que toca escorrega, transforma-se numa serra que corta a alma em mil pedaços. E enquanto se despedaça e o medo fecha os panos, eu desço e sinto a história, o sódio que me transmite a memória de cada canto, cada poro, cada nódoa, cada pranto.

Cheguei agora ao lugar por onde inalas a vida, cheiro o sangue coagulado que se esconde nas narinas dessa inocência a proteger a mão assassina do silêncio do grito mudo do não. Se três letras sabem falar um “sim”, já nem a acentuação do til na negação é suficiente para perceber a dor do órgão que bombeia a vida.

Percorro um pouco mais na pureza da tua pele de criança. Ser lágrima de ti é uma dádiva. Mas… porque não vejo? Porque não sinto isso agora? Noutra vida que tive em ti, percorri face abaixo até ser sabor na tua boca. Ainda me lembro de te ver sorrir. Mas hoje… tremem-te os lábios e sinto o odor a terror, não queres sentir o sal da minha alma mas tão somente chorar, chorar.

Vou agora ondulando até ao teu queixo de criança, escrevo-te um arrepio e, a pingar, reflete-se em mim uma imagem sombria, um ser arrepiante. Num outro dia me perderia a teus pés, mas hoje vejo-te caída e despida, sinto-te abandonada. Pingo para o teu peito e toco-te suavemente, deixei na tua face parte mim. Sinto as batidas repentinas, o sincronismo num caos e o sangue num frenesim de pânico e medo. Gelas e escaldas num só tempo, ouço um “dó” e um “si” a torcer a clave tocando uma sinfonia doente que de repente me assusta e me choca. A mim, água de sal da tua alma. Lágrima do que vês e sentes.

Que sombra é esta que te assola? Que monstro te cobre, assim?! Que ruindade te toma por dele? Sinto que a vida ainda mal a conheces e já te a assaltam assim. Sai vadio! Rato nojento! Não toques nela, não toques em mim.

Já não há o perfume que sentia ontem em ti. Há terror, há anseio por algo, algo que seja o fim. Onde estão os teus protectores? Aquela manta que te cobre do frio, a colher que te tira a fome, o abraço de carinho que te alimenta o sorriso, que te dá vida ao segundo, que te deita, enfim?

Não te ouço cá fora, mas o sal, que há em mim, ecoa as palavras que imaginas mas não consegues proferir: Mãe, pai! Não! Pára! Quero sair daqui!

Vejo-me a escorregar em direcção à mão suja, não quero. Não quero tocar para onde o caminho me leva, não sou dele, sou de ti. Mas a força da gravidade, braço solto da Natureza, invoca o ar que me empurra e saio da face do teu peito para o nojo da mão que te atormenta e que, doentia, te toca e te arranca da inocência da vida pela pressão com que te agarra e te implode. Medo, raiva, uma incógnita do mundo que te faz esquecer o que aprendeste, corres até onde te escondeste, lá, no canto onde guardas os teus pais, num canto do coração, num canto da tua alma.

Vejo-te agora daqui, onde me sinto envenenada pela arrogância macabra em poros sujos de rouquidão, catarro, vinho e covardia de um homem que de aspecto engana. Tens sobre ti uma aberração.

Ouço o terror das outras, as que me repetem sem fim, que jorram dos teus olhos e que já me ouviram, que temem pelo seu fim. Ainda sinto a tua pele a latejar e os teus olhos escurecerem, à medida que te despedes da consciência absoluta.

Misturo-me agora com suor, que veneno esta espécie de adrenalina doentia. Em que me transformo agora? Sádica loucura que me faz delirar, sinto o prazer da mentira de amar. Qual química me fez assim neste destino errante onde tenho de sentir o que toco e transformar-me num eco do que a pele me dita.

Não quero! Não gosto de me sentir assim. Se vou sentir este prazer doentio que gosta de te fazer sofrer, então quero secar, evapora-me ar que me rodeias.

Já não sou lágrima tua, desses olhos de criança, num corpo de esperança que agora se transforma num farrapo onde se assoa o pior da consciência humana. A insanidade permitida por instintos venenosos. Qual doença? Qual vontade? Qual incapacidade? E então tu, que sofres? És fraca? Talvez, porque te subjugas e não gritas um “Não!”, com a firmeza que as leis da justiça necessitam para entender com certeza.

Era lágrima de ti há pouco. Doía. Mas agora sou veneno com odor de terror, perfume que se entranha na tua pele. Não há banho que te vá livrar dessa sujidade seca, gordura, qual nódoa que se amanha nas fibras da tua epiderme.

O beco onde estou presa move-se, agora com uma brutalidade digna de um recanto humano com odor de esgoto. As mãos do prevaricador agarram-te as pernas, farrapos de inocência desmanchada que outrora correram às escondidinhas e te levaram aos abraços de quem chegava do trabalho por ti.

Atiro-me.

Enquanto vivo esta queda, como gota que sou, tento refletir o abismo onde te atira tal fraco ser que te rasga corpo e alma ao meio. Caio novamente em ti. Agora suja, opaca. Já não deixo ver, já não consigo sentir. Onde estás tu? Onde te escondes?

A besta larga-te por fim. Imóvel te afirmas. Em ti, só me movo eu e todas as outras que me seguem. Passei há pouco pelo teu joelho, ardi-te na crosta que falta. Nem te mexeste. Estás escondida atrás do nada, agarrada ao vazio, atropelada pela ignorância humana e desprotegida da vigília do “finge que não vês e não sabes”.

Podes esfolar que não sai. Quem te disse que dava castigo, não se soube explicar. Não é para ti, criança, é para quem te faz mal!

A minha viagem de hoje está a terminar. Sinto-te o sangue começar a correr novamente, tremes sem vento num sismo de desilusão por quem te sentes. Já vejo os teus pés. Hoje fico contigo. Hoje recuso-me a sair de ti. Hoje não vou ao chão. Hoje… seco-me em ti.

Fui lágrima de criança, de ti, de esperança. Passei num pesadelo que me fez sentir a vergonha que podes viver em fazer parte desta raça. Se o erro é propriedade humana neste mundo insano, em que tantos olhos me geram, então sou lágrima de engano, sou lágrima de desespero… de ti… o salitre que impregna os momentos de criança.

Vai gritar e chorar que mais de mim virão e irão denunciar o que outros olhos, aqueles que conheces como exemplo, fingem não ver. Uns choram para o lado, outros brilham de prazer, um prazer que não é digno de tal palavra, e tal ser. É crime contra a humanidade, num disparo de pólvora sangrenta apontada ao futuro, à inocência dos olhos, coração e pele dos nossos filhos, da pele de todas as crianças. Todas.

Fui lágrima de criança, de ti, de esperança. Passei num pesadelo que me fez sentir a vergonha.

Enquanto a tua pele me absorve, agora, deixo-me ir. Leva-me contigo para te fazer brilhar novamente. Levanta-te e grita, denuncia somente. Porque parece que ninguém… mais ninguém o faz por ti.

O homem abandona criança e lágrimas, ameaça, e o pesadelo não acaba. Fica escrito no medo que corrói as mãos inocentes de um dos nossos legados.

Agora, que ministros se agrupam, num projecto pelo país, à nossa nova ministra da justiça cabe olhar a pedofilia, não só como um crime, um julgamento a executar, mas como uma vergonha de um país que dirá as crianças amar. Ou não será casa para os nossos legados?

Quando penso que não poderia ser pior, apercebo-me que as denúncias são migalhas deste crime e vão-se fazendo ver. Mas são de casas, de tectos, de grupos pousados na mesa da sociedade aparentemente de inclusão instalada. Mas no mundo real da exclusão, onde a opinião não chega e a política nada tem a ganhar, há milhares de crianças perdidas, simples e completamente abandonadas, sem família que as proteja. Estão ao dispor da adopção dos subúrbios da droga e da exploração sexual. De todos os dossiers fotográficos disseminados na rede global, disponíveis nos servidores do mundo digital, desejemos que as faces e corpos dos nossos se mantenham nos da família. Infelizmente, para muitas crianças, as suas fotografias nem na gaveta lá de casa estão em segurança.

Os tópicos que um browser nos dá hoje ao pesquisar, com a repugnante mistura de palavras que colam crianças a abusos sexuais, são de nos deixar a pensar que raio fazemos, ou não, todos os dias para que nada disto melhore.

Quando penso que não podia ser pior, percebo que se uma criança de doze anos consentir tal acto, os juízes, penduram a pena ao vento. É assustador saber, a olhar para o lado podemos estar a deixar os nossos filhos à mercê de tão erradicante destino. É tão assustador o que estes seres podem fazer como as leis que os protegem.

O que nos vai deixando descansados, e não nos atira para os trilhos onde se veste um luto sem luz, é que estas coisas só acontecem aos outros… não é?

M.A.

Um passo: Nasceu no Porto o “Projecto Criar”. Falta fazer a caminhada. Cria o teu projecto. Faz a tua marca.