sábado, 20 de agosto de 2011

Cascas

ma - tremoços

“Amanhã, temos de fazer um pouco melhor do que hoje. Está na altura de, mais de nós, lembrarmos que as mãos tanto servem para agarrar como para dar.”

(…)

De café em café, de esplanada em esplanada, lá estavam dois a quatro lotes de prédios antigos, com três ou quatro andares, e, com janelas e varandas, gradeadas a ferro trabalhado, onde os vasos floridos cantavam mil cores nos ecos da rua. As pupilas turísticas e bocas de arquitectura apreciavam a tão acolhedora e pintada tradição que lhes ladeava o passeio.

Sentei-me na esplanada do primeiro café, definitivamente o mais antigo. Chão de calçada lavada à mangueira, mesas de alumínio com friso preto de plástico, cadeiras a condizer, e, com uma fila de canteiros que simpaticamente delimitavam a sua área de esplanada.

A partir daquele poiso, observava toda aquela rua, uma espécie de planisférios de meio-mundo onde as pessoas deixavam transparecer toda a diversidade que o ser humano tem na sua espécie.

Sentia-se no ar o sabor das torradas a misturar-se com o perfume pobre dos miúdos do bairro e com o brilho amargo das peles dos casacos que ostentavam no café da frente. Eram bem tostadas e estaladiças, em fatias de pão de centeio (…)

(…)

Chamei os putos, pedi-lhes para colocarem os cigarros no cinzeiro.

- Aguardem quietos, o senhor já vos traz tremoços. Mas dos cheios! – E riram em breves segundos.

Olhei mais uma vez os prédios e engoli na alma o soprano encantado de um girassol que sorria aos céus. Nem o velho, nem os vasos, estavam iguais desde que ali tinha comido a minha torrada a primeira vez, hoje de manhã.

O tempo passa a correr.

O ser humano é, de facto, uma diversidade de si mesmo. Em que café vivemos? A verdade é que somos todos donos e clientes de um espaço que toma mil formas, cores e odores, qual camaleão que nos dá, a nós transeuntes das ruas da essência humana, o tapete, assento e temperatura que a nossa atitude decide ter.

A que café vais hoje? O que vais beber? Quem vais convidar à tua mesa?

Enquanto nos mergulhamos neste fingimento que nos toma como alguém que perdeu os sentidos, ou mesmo a vontade de falar a coisa certa, enquanto nos distraímos, dizia, não vemos os vasos do mundo a nos contarem histórias de flores que querem brotar, viver e cantarem cores, cores que nunca vimos, cores novas, outras cores.

As sobras do que somos e fazemos, e que deixamos espalhadas ao vento, caiem num chão agora árido e seco pelo desequilíbrio em que vivemos e que pouco ou nada germina. Os arados estão parados, enferrujados, e os restos, que largamos de nós (que não queremos e que, para nós, não terão valor – até ao momento), ficam à mercê de quem espreita por uma oportunidade de saborear a vida, seja de que forma for. São sobras, são lixo. Umas vezes simplesmente restos, outras veneno. O que desperdiçamos e o que extraviamos, no mundo, tornar-se-á num legado. As gerações mais novas e as vindouras não sabem, mas temos de fazer mais do que simplesmente o suficiente.

Miséria não é equilíbrio. Hoje, temos de fazer mais do que ontem. Amanhã, temos de fazer um pouco melhor do que hoje. Está na altura de, mais de nós, lembrarmos que as mãos tanto servem para agarrar como para dar.

(…)

in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida