terça-feira, 6 de setembro de 2011

Onde se põe o arco-íris?

ma - onde se poe o arcoiris

“Foi o melhor momento do dia. Não podia ter começado a manhã melhor, do que com a alegria do Luanda.”

Já era tarde, a luz da lua iluminava de uma forma teimosa as mãos dele, mas os olhos já se deitavam antes dos braços.

(…)

O livro caiu no colo, junto com as mãos calejadas do campo. Amanhã é dia de escola, três quilómetros com paladar a terra húmida, a saborear os beijos da chuva morrinha e morna, com os pés descalços. Já seguia a aventura para aí na página trinta e um, onde Luanda e a jovem Lara já se conheciam graças àquele arco-íris mágico. Lara chamava-lhe o arco da vontade e às cores dava-lhes nomes: atitude, amor, amizade, igualdade, direito, altruísmo e força. Eram amigos há quase quinze folhas. O rapaz bocejou e as pálpebras guardaram finalmente os cintilantes olhos verdes para mais uma noite de sono e sonhos. (…)

Ao abrir a terceira porta do corredor, ouvia-se o silêncio das letras chamarem por quem quer que desse um passo em frente. Uma luz suave do candeeiro de parede, meia-lua de porcelana, acolhia os móveis de cerejeira sem vitrinas. Lado a lado cobriam as quatro paredes, intervalando apenas entre as janelas. A mesa central era quadrada, de dois por dois, apenas ela ali no meio, de madeira negra como a noite. Sustinha-se nas quatro pernas trabalhadas a relevo de formão e martelo de marceneiro, em cima da longa tapeçaria de arraiolos que deslumbrava com as notas suaves que os fios abraçados suspiravam a cada passo.

(…)

Assim que lhe deu o livro, ficou a vê-lo correr sem assistência e aos berros, abanando o livro no ar enquanto corria desajeitado até desparecer para dentro da sala de aula. Sorriu e voltou a entrar na carripana. Foi o melhor momento do dia. Não podia ter começado a manhã melhor, do que com a alegria do Luanda.

Angola, 2011. Quarenta por cento da população não chegou ainda às quinze Primaveras, que mais a Inverno se assemelham. Um país jovem e, como poderíamos concluir, a abarrotar de potencial. Mas não. Um dos países menos desenvolvidos no que toca ao desenvolvimento humano. Um verdadeiro desperdício de futuro da humanidade. Numa terra onde uma biblioteca é um sonho que vem do outro lado do arco-íris, há crianças que têm na sua lista de desejos diários, juntamente com o pedaço de pão e uma peça de roupa, um livro. Um livro. Um conjunto de páginas, uma história, traços em forma de letras para desenhar palavras sobre sonhos e futuro em corações endurecidos, amor em forma silábica com tónicas de melodias graves e agudas que enchem os olhos e entram nos tímpanos directamente ao lago dos sonhos, bem protegido na zona colorida do córtex de uma criança… que possa sonhar.

Um livro. Aquele que não lês há muito, aquele que ficou perdido dos teus tempos de adolescente, esse que já leste e não queres ler mais, o outro, um qualquer de que gostes, tanto que o desejes partilhar. Dar. Dar àqueles olhos, lá, do outro lado do arco-íris, à espera que alguém como eu, tu, nós enfim, desenhemos umas quantas palavras nas brancas páginas que se escondem entre os seus olhos e a contracapa de um coração privado de tanto, tão longe de muito. Em branco. Vamos escrever, escrever naquelas vidas, palavras, de preferência, que à noite lhes deixem adormecer e fiquem a sussurrar histórias, poemas e desejos. Frases de sonhos. Frases de esperança. Para que um dia nos possam conhecer. Para que dia, possam crescer como nós. Como eu. Como tu. Eles, lá, na página seguinte da vida que lês, onde as cores do arco-íris dormem num leve sono, à espera que as acordemos. À espera… que acordemos.

in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida

Dá a mão. Dá um livro.