sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Livro de reclamações

 

“Eu não te chateio mais por ir para a cama cedo. Tu não resmungas mais por causa da crise. (…) Pelo menos enquanto continuarem a morrer crianças inocentes na Síria... ”

"(…) Olhou perdida o chão do quarto, sem saber por onde haveria de começar. Agora era uma boa altura para dar aquilo tudo, ficaria arrumado. Pelo menos o assunto. Pelo menos até querer brincar outra vez. (…) o pai mudou rapidamente de canal com uma intervenção de ditadura e olhando-a fixamente.

- Já te disse que as notícias não são coisas para ti. Não a esta hora, só passam estas “porras”. – resmungou.

- Já acabei pai, posso ir ler para o quarto? – perguntou docemente, quase, quase, sem interesse.

- Podes, lava os dentes antes. – afirmou, distraído.

Depois da escovagem, esgueirou-se pelo quarto dos progenitores. Lá dentro, no escuro, fez um estiramento completo até ao cimo da cómoda e enquanto a fazia uma careta de esforço ao chão, lá às apalpadelas, conseguiu premir o botão junto à luz vermelha intermitente. O comando estava em cima da cama e, com uma mestria de espia, carregou no mute.

O vermelho que antes parecia esbatido na capa da bruxo da Branca de Neve, era vivo agora. Jorrava nas imagens por entre a inocência. Mas havia desligado o som. Não se ouvia o fumo. Não se ouviam as lágrimas. Não se ouviam as crianças, deitadas e imóveis como que linhas descontínuas indicando validade para ultrapassar.

Uma estreia assim, mesmo que à distância e protecção da caixa, terrivelmente mágica, não deveria ser feita sozinha. Sentiu que não devia ter desobedecido. Ainda assim, leu o roda-pé da reportagem. Esticou-se novamente e desligou. Largou o comando na cama e ficou mais uns momentos imóvel. Passado um pouco, depois do efeito hipnotizador da intermitência do sinal de stand-by ter perdido o efeito, saiu do escuro e foi para o quarto.

Deitou-se a ler. Ficou a olhar páginas, e fitou os caracteres bem lá no fundo.

(...) estendeu-se no sofá, deitou a cabeça no colo dela e abençoou o cenário com os seus longos cabelos. Abraçou o joelho da mãe com a palma da mão e ecoou um suspiro.

- Mãe? – sussurrou enquanto uma lágrima escorria até à ganga.

- Humm? – preferiu a Mãe, enquanto lhe afagava os cabelos e não perdia legenda da série.

- Eu não te chateio mais por ir para a cama cedo. Tu não resmungas mais por causa da crise. – proferiu num suave tom de acordo. - Está bem assim? – questionou retoricamente, como quando uma criança se faz de grande.

A mãe parou o tempo e sentiu-a. Espreitou por entre os cabelos que lhe tapavam a face da cara que mal se via. Questionou-se silenciosamente. Uns segundos de nada. Beatriz sentiu que tinha de explicar à mãe e irrompeu o vácuo empurrando ligeiramente a sensação de pausa que se tinha alocada naquele momento.

- Pelo menos enquanto continuarem a morrer crianças inocentes na Síria... – confessou, enquanto bebia o sal da sua única lágrima.

in "Estás aí?"
(c) 2012 Manuel Almeida