Sente-o nas mãos.
Diverte-te.
Deixa solidificar.
Surpreende.
Desfaz e refaz.
Faz.
Celebra a tua obra.
És tu.
Tu és plasticina.
Sê o que sonhas ser.
Moldar ao despertar.
Sente-te.
Diverte-te.
Vive.
in "Estás aí?"
(c) 2012 Manuel Almeida
in "Estás aí?"
(c) 2012 Manuel Almeida
“(…) viveremos como os outros nos ditam, seremos como nos definem as etiquetas que nos agrafam e diremos apenas o que os títulos, que nos timbram no peito (…)”
Há títulos e títulos. Um título é essencial, pensamos, para decidirmos se vamos investir tempo no que intitula e até que ponto nos vamos entregar ao corpo intitulado. Seja o título que concebemos nos primeiros momentos que ouvimos alguém, esse corpo humano que pede a nossa atenção; o corpo do texto, cujo título tenta nos remeter ao segredo ou à curiosidade; o corpo do dia pelo título do ar do céu da manhã. O corpo. O título.
Mas tantas vezes já fomos surpreendidos, já vimos títulos errados, outros até enganadores. Quando deveríamos ter aprendido a descartar os títulos, a partir à descoberta, a arriscar ser surpreendidos, a deixar que a vida seja um encontro de oportunidades e não um espaço de preconceitos: o que fizemos?
Não só continuamos a idolatrar os títulos como criamos um mundo das tags e as etiquetas, que tendiam a sobreviver em meios muito específicos e no interior das nossas roupas, ganharam um espaço universal. Traiçoeiras essas. Por alguma razão, nos têxteis em geral, vêm atrás, nas costas e não no avesso. Ao menos os títulos estavam à nossa frente.
Visto que o cérebro é movido pelo máximo de treino e tangibilidade, a internet e todo o mundo digital em geral vieram materializar e dar corpo e cor a esse novo mundo, diria antes, a essa nova ordem presidida por uma infalível parceria entre os títulos e as etiquetas: headlines & tags.
Ou resistimos com todas as nossas forças a esta ordem, ou nos tornaremos em seres com uma fita na cabeça com a nossa palavra-chave para quem nos quiser “googlar” no vizinho, t-shirts com headlines escritas pelos outros e um conjunto de tags que nos vão agrafando à medida que socializamos ou não. Cabides de opiniões, de todas menos da nossa. Essa fica para trás, no avesso da roupa interior.
E assim viveremos como os outros nos ditam, seremos como nos definem as etiquetas que nos agrafam e diremos apenas o que os títulos, que nos timbram no peito, dizem.
Será que isto tem apenas potencial para acontecer ou estará a acontecer de facto? És mesmo tu? Estás despido de títulos e preconceitos? Não sentes zonas da tua carne adormecidas pelas picadas dos agrafos ou pelas pontas das etiquetas cozidas na tua pele? És só tu? Tens título?
Estás aí?
in "Estás aí?"
(c) 2012 Manuel Almeida
“(…) ao deitar e erguer de um dia para o outro. Todos os dias.”
O que a passagem de ano tem de especial é que serve de marco de viragem de vidas, de promessas de fazer mais e melhor na ponta das uvas passas, de novos objectivos na cristal do copo, de partilhar mais com o próximo no bolo rei e de marcar o mundo pela positiva nos abraços do primeiro segundo do dia um.
Perguntaram-me noutro dia:
- Mas porque é que passados uns dias, toda essa energia e esperança se esmorecem?”
Respondi:
- Simples. Essa passagem, esse marco, essas promessas e objectivos, esse desejo de partilha e de focus numa causa maior que o próprio, não pertencem ao momento entre o dia 31 de Dezembro e o dia 1 de Janeiro. Pertencem ao deitar e erguer de um dia para o outro. Todos os dias.
MA
“Há uma espécie de Alzheimer neste planeta que afecta meio-mundo. Estranhamente há datas, como o Natal da religião católica, em que esse vírus adormece.”
Nesse mágico dia ecoam mensagens fantásticas. Mensagens de esperança para os que dormitam na aflição, desejos de felicidade para os que jantam tristeza, gritos de força para os que erguem fraqueza.
Mas nem tudo é a favor: há também punhos de repressão contra os que distribuem panfletos de opressão, dedos apontados aos que arranham submissão em costas de candura.
Há uma espécie de Alzheimer neste planeta que afecta meio-mundo. Estranhamente há datas, como o Natal da religião católica, em que esse vírus adormece.
Quando o Natal acaba, réstias de palavras caídas esvoaçam com os ventos de Inverno. Na Primavera florescem vidas, no Verão aquecemos os pés. No Outono as árvores despem-se. E nós esperamos mais um Natal, para sentirmos a pele arrepiar. Para nos lembrar-mos, novamente.
Meio mundo aguarda por quatro estações. Bem dizem que a esperança é a última a morrer. Eu diria mais: é a última a esmorecer, afinal, descansa imenso.
MA
“Ouvimos muito, mas ouvimos mal. Ouvimos do lado errado. (…) São buzinas graves, notas ruidosamente castrantes para qualquer decisão. E dúbias, também elas se tornam. As decisões.”
Olha o vermelho. Torce-se. Tenta tirar, do bolso apertado na ganga, o velho porta-moedas que fora do avô, puro couro, em arco, daqueles que num jeito macho deixa escorrer os trocos do esconderijo de um lado para o outro. Não tira agora o cinto, o verde pode chegar e as vigílias que o filam de trás buzinarem. Consegue finalmente. E o vermelho ainda paciente. Abre o vidro e fixa-a. Deixa o tilintar terminar na mão dela enquanto se esforça por lhe desvendar um sorriso na face. Não faz contas, mas ela sorriu. Ainda está vermelho.
A porta do café abre-se. Entra um ser que, por volta das oito da lua, se prepara para o primeiro do dia. E fica verde. E tem tempo de sorrir, mesmo antes de arrancar.
Há momentos na vida – quantos menos melhor - em que nos sentimos impelidos a fazer inversão de marcha, voltar para o lugar de estacionamento, sair e não largar o cinto de segurança. Arrancamos depois, engole-se: depois, logo a seguir ao menos infinito.
Azar ao quadrado é que no momento em que a coragem nos está prestes a invadir, alguém nos bloqueia as rodas, certo? A culpa nunca pode ser nossa, não, esse ónus não nos cabe respectivamente. Pois, parquear muito tempo tem muitos custos.
Essa indumentária da desconfiança que vestimos tantas vezes, que nos acalenta no insípido clima e nos cobre o semblante com nobres golas. Tem um gorro opaco ao ar que cria um microclima de dúvida mesmo junto ao escalpe. Arranca-nos da verdadeira dimensão da vida, retira-nos a plenitude de se amar e ser-se amado pela vida em si. Deixámos de sonhar, de acreditar e, numa espécie de demência consciente, de confiar. Dúbios dias. Porquê?
Ouvimos muito, mas ouvimos mal. Ouvimos do lado errado. Uma almofada de autocomiseração que não tapa, não abafa. São buzinas graves, notas ruidosamente castrantes para qualquer decisão. E dúbias, também elas se tornam. As decisões. E se não é fácil somos dúvida. Logo desconfiamos. Assim hesitamos. Grilheta invisível que nos acorrenta àquele lugar, tão só nosso, o parqueamento de onde assistimos a tudo: a todos os sucessos e derrotas alheias. Ali podemos comentar tudo e todos. E não valem espelhos.
Definindo “fácil”: acreditar que o difícil da vida não é o nosso impossível, aceitarmos a evidência de que somos senhores dos nossos gestos. As decisões são tiros de chegada. Já partimos há muito tempo.
in "Estás aí?"
(c) 2012 Manuel Almeida
A partilha de um momento com quem não tem momentos de partilha é como abrir um pão e barrar dos dois lados. Depois de dividir, metades iguais de metades diferentes. Não somos inteiros se separados, somos um todo abraçados.
MA
“Posso amar sem nada se te partilhar este momento.”
Posso estar sem ficar
se não vier de onde tenho de ir.
Posso gritar sem falar
se não disser o que me esqueci.
Posso olhar sem ver
se não reparar no que escondi.
Posso escutar sem ouvir
se não ficar atento ao silêncio de ti.
Posso correr sem tempo
se não parar onde já andei.
Posso respirar sem ar
se não expirar o que inspirei.
Posso nada sem tudo
se viver o que não conseguir.
Posso ganhar sem ter
se não vencer o que já perdi.
Posso tocar sem sentir
se não te amar por dentro.
Posso amar sem nada
se te partilhar este momento.
in "Estás aí?"
(c) 2012 Manuel Almeida
“Será crude meu coração? (…) Então porque continuas a matar toda a esperança. (…) sou só uma criança.”
Serão minhas lágrimas diamantes?
Será crude meu coração?
Vês petróleo no meu sangue?
Vês tu ouro nas minhas mãos?
O que produz a guerra além
de atrocidades sem fim.
São minerais que meu corpo tem?
Serão meus dentes de marfim?
Então porque continuas
a matar toda a esperança?
Porque é só isso que eu sou,
Eu sou só uma criança.
Porque é só isso que eu sou,
Eu sou só uma criança.
São meus ossos material
bélico para um grupo armado
terei nas artérias fibra especial
onde corre o tão derramado?
É só isso que eu sou,
É só isso que eu tenho.
Já não sei para onde vou?
Nem porque ao mundo venho.
Será
que um dia destes me vão
conseguir responder?
Será
que entendo a tempo, antes
de voltar a morrer?
Então porque continuas
a matar toda a esperança.
Porque é só isso que eu sou,
Eu sou só uma criança.
Porque é só isso que eu sou,
Eu sou só uma criança.
Porque é só isso que eu sou,
Eu sou só uma criança.
Eu sou só uma criança.
Eu sou só… esperança.
in "Estás aí?"
(c) 2012 Manuel Almeida
“Eu não te chateio mais por ir para a cama cedo. Tu não resmungas mais por causa da crise. (…) Pelo menos enquanto continuarem a morrer crianças inocentes na Síria... ”
"(…) Olhou perdida o chão do quarto, sem saber por onde haveria de começar. Agora era uma boa altura para dar aquilo tudo, ficaria arrumado. Pelo menos o assunto. Pelo menos até querer brincar outra vez. (…) o pai mudou rapidamente de canal com uma intervenção de ditadura e olhando-a fixamente.
- Já te disse que as notícias não são coisas para ti. Não a esta hora, só passam estas “porras”. – resmungou.
- Já acabei pai, posso ir ler para o quarto? – perguntou docemente, quase, quase, sem interesse.
- Podes, lava os dentes antes. – afirmou, distraído.
Depois da escovagem, esgueirou-se pelo quarto dos progenitores. Lá dentro, no escuro, fez um estiramento completo até ao cimo da cómoda e enquanto a fazia uma careta de esforço ao chão, lá às apalpadelas, conseguiu premir o botão junto à luz vermelha intermitente. O comando estava em cima da cama e, com uma mestria de espia, carregou no mute.
O vermelho que antes parecia esbatido na capa da bruxo da Branca de Neve, era vivo agora. Jorrava nas imagens por entre a inocência. Mas havia desligado o som. Não se ouvia o fumo. Não se ouviam as lágrimas. Não se ouviam as crianças, deitadas e imóveis como que linhas descontínuas indicando validade para ultrapassar.
Uma estreia assim, mesmo que à distância e protecção da caixa, terrivelmente mágica, não deveria ser feita sozinha. Sentiu que não devia ter desobedecido. Ainda assim, leu o roda-pé da reportagem. Esticou-se novamente e desligou. Largou o comando na cama e ficou mais uns momentos imóvel. Passado um pouco, depois do efeito hipnotizador da intermitência do sinal de stand-by ter perdido o efeito, saiu do escuro e foi para o quarto.
Deitou-se a ler. Ficou a olhar páginas, e fitou os caracteres bem lá no fundo.
(...) estendeu-se no sofá, deitou a cabeça no colo dela e abençoou o cenário com os seus longos cabelos. Abraçou o joelho da mãe com a palma da mão e ecoou um suspiro.
- Mãe? – sussurrou enquanto uma lágrima escorria até à ganga.
- Humm? – preferiu a Mãe, enquanto lhe afagava os cabelos e não perdia legenda da série.
- Eu não te chateio mais por ir para a cama cedo. Tu não resmungas mais por causa da crise. – proferiu num suave tom de acordo. - Está bem assim? – questionou retoricamente, como quando uma criança se faz de grande.
A mãe parou o tempo e sentiu-a. Espreitou por entre os cabelos que lhe tapavam a face da cara que mal se via. Questionou-se silenciosamente. Uns segundos de nada. Beatriz sentiu que tinha de explicar à mãe e irrompeu o vácuo empurrando ligeiramente a sensação de pausa que se tinha alocada naquele momento.
- Pelo menos enquanto continuarem a morrer crianças inocentes na Síria... – confessou, enquanto bebia o sal da sua única lágrima.
in "Estás aí?"
(c) 2012 Manuel Almeida
“Cobriu-a com um sorriso. (...) deixando ao luar o prazer de a ver, de a fazer reluzir, ainda que na sombra, ainda que possa parecer sem brilho.”
A noite assobia uma leve e morna brisa que trespassa o peito e embala por entre o cartão canelado orquestrando breves assobios que lhe fazem lembrar as grades do berço e voz de outrora. A almofada tem perfume de cereais de cacau e até quase que os mastiga, de tão estaladiço que é o aroma.
Nunca deixa os trapos de lençol esticados, mal emaranhados com meio corpo descoberto, para convidar os transeuntes ao gesto de misericórdia com sabor a carinho de baunilha e beijos de canela. (...)
(…) Cobriu-a com um sorriso. Esticou os trapos emaranhados até à fonte dos cabelos loiro-sujo e dobrou ligeiramente para dentro, reconfortando os ombros e deixando ao luar o prazer de a ver, de a fazer reluzir, ainda que na sombra, ainda que possa parecer sem brilho. Talvez, mas era reluzente, fazia reflexo. Um reflexo que ficava.
in "Estás aí?"
(c) 2012 Manuel Almeida
“Quando havia iogurte na sobremesa divertiam-se a ver quem conseguia a colherada que mais tempo ficava a escorrer para a embalagem. Era um pagode!… Mas eram duas ou três vezes por mês.”
(...) A rua era a pique. O reflexo da noite brilhava nas saliências da calçada e o perfume a orvalho, que a chuva tinha deixado, prometia-lhe uma viagem fresca e silenciosa pelos paralelos mal amanhados.
Cada vez que uma saliência desenhava na água o reflexo das casas, sentia-se maior. Quem, no mundo, estaria a usufruir de um momento igual?
A servir de base à rústica imponência dos lampiões de duas cabeças, que se impunham em ziguezagues ao mesmo tempo que trocavam amperes competindo com a cauda da lua, o chão continuava a namorar as pupilas. O cansaço tinha adormecido por entre a humidade que tocava as palmas dos pés. Ia sorvendo o reflexo do revestimento espelhado que a chuva dava aos paralelos, à medida que as passadas o levavam até à fonte, lá no cimo, no centro do fim da rua. (...)
in "Estás aí?"
(c) 2012 Manuel Almeida
“Nunca é tarde para apoiares, nunca é tarde para apadrinhares. Pelo menos para quem te espera.”
A terra sorvia o sol fazendo gretar a paisagem. Sementes caídas da Natureza espalhavam-se e o seco fazia ecoar a leveza de tais elementos. A paisagem chamava por alguém. Árida, ampla, deserta, quente e seca, enquanto leves empurrões da brisa que rasteava junto à terra faziam-nas deslizar por entre as fissuras deixadas pela humidade oferecida aos céus.
Os Homens já há muito se haviam esquecido dela. Delas.
(…)
Milhares de crianças vivem assim, entre as fissuras da sociedade gretada pela aridez da atitude ausente, com pais ausentes ou inocentes, esperando uma mão de cuidado, amor em valor, um apadrinhamento incondicional e dedicado, um apoio decidido e afecto à rega que necessitam para que amanhã, já amanhã, possamos respirar os seus sorrisos e manter a temperatura da vida sem receios de asfixiar ou sentir a hipotermia do que se poderia ter feito em vez do que não se fez.
Está na hora de fazer uma troca, trocas deveriam ser um hábito e não um marco no calendário. Trocar um jantar fora de casa, a cafeína de meio mês, metade de uma oferta, uma coisa a menos, um material a mais. Trocar. Trocar um dia, por uma vida.
Nunca é tarde para apoiares, nunca é tarde para apadrinhares. Pelo menos para quem te espera.
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
Dá. Dá de ti.
Centro de Acolhimento Temporário da Santa Casa da Misericórdia de Gaia
“… a diferença é o resultado da subtracção de dois valores, um maior e outro menor: a realidade e o teu gesto. Pode ser pequeno, mas é ele que faz a diferença.”
É uma das fases da Lua. Assume-a na altura em que um ângulo recto é definido entre o nosso planeta, este satélite e a estrela que nos acalenta. Vemos apenas metade da rainha da noite, metade que vai diminuindo progressivamente. Assim está a necessidade básica nas famílias: minguante.
(…)
Voltou a abrir ligeiramente e enfiou a face entre a caixilharia velha de madeira, entre uma mão e outra. Arrancou um largo sorriso, beijou-a na presença das estrelas e murmurou-lhe um “boa-noite”. A lua agradeceu a Inês, sorrindo com o que lhe restava à esquerda do hemisfério norte. Terminou assim o seu jantar e vestiu o pijama no conforto do colo da mãe.
Na próxima refeição, depois de leres esta publicação, sentado à mesa, coloca um pedaço de pão no teu prato e pensa: e se este fosse hoje o meu jantar? Porque seria e como haveria de o resolver? Pensa, cria, porque a diferença é o resultado da subtracção de dois valores, um maior e outro menor: a realidade e o teu gesto. Pode ser pequeno, mas é ele que faz a diferença. Mas quando o fizeres, acredita. Só assim obterás o resultado certo. Só assim se faz bem.
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
Uma dica, uma pista mágica.
“No meio do frenesim dos défices, os buracos na justiça são bichos da madeira que corroem o sentido dúbio de infância a que algumas crianças são submetidas.”
(…) Abraça-me mais uma vez, eu falo contigo, a sério, falo. Não me largues agora, acho que vou falar, sim, quero, não me largues por favor. Olha, deixa-me limpar os olhos, ouve. Sabes, lá na escola… (…)
(…) Deve ser uma gestão baseada na máxima política que é cliché incansável nos tempos: mais vale ser mal falado, do que não ser falado. O tempo apaga.
Pois, ao que parece, não é só o tempo. Em primeiro, temos a arte que a justiça tem em fazer levitarem no ar, como penas, penas suspensas, os crimes cravados por quem sofre desta doença de não conseguir controlar os seus impulsos (é uma doença, não é?!). Assim lhes chamam, suspensas. Depois, vagueando por entre a vergonha das vítimas e a ignorância da lei, pendem-se como seres dotados de créditos extra no jogo do abuso da sorte e dá-se o milagre da reintegração social. (…)
Quando o caminho, seja para a escola, seja para onde for, tropeça em calçada de silêncio e medo, é tortuosa a entrada, o toque para dentro. O giz, podre, larga um odor de incógnita. No sumário, uma condenação admitida, um programa repleto de actividades extracurriculares que podem iniciar-se a qualquer momento, até mesmo, numa simples “ida ao quadro”.
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
Denuncia. Só isso. Denuncia.
“Num quadro pintado de cama sem mesa. Uma cama de pedra, é o teu legado.”
Passo
todos os dias por esse lugar.
Nessa rua, nesse canto, nesse pranto,
no princípio do fim desse recanto.
Num escuro
e sombrio lote de nada,
onde vives, onde dormes e respiras,
onde lembras e esqueces o momento.
(…)
Quando queres um rasgo de leite,
quando queres uma gota de pão,
quando matas a sede de ser aceite,
quando choras...
(…)
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
“Entre histórias, julgamentos e juízos de valor, estão vidas. Vidas que nascem com uma revelação em filme negativo antes mesmo de serem reveladas.”
A rua principal, a Rua dos Perdidos e Achados, é numa parte da cidade movimentada numa serena normalidade onde trinta por cento é comércio usual e, o restante, habitações. A travessa, apadrinhada de “a rua do lixo”, tem cerca de quatro metros de largura, paralelo gasto e coberto pela areia, que adora ali ficar, e três contentores dispostos numa igual distância entre si. O primeiro contentor, o mais novo e limpo, na entrada, que é o mais usado pelas portas da rua principal; o contentor de meio, quase nunca usado, no meio da rua, parte há muito abandonada pelos inquilinos do único prédio ao que se junta as traseiras do restaurante de outrora; o último contentor, pouco renovado e usado para servir de alvo a latas e garrafas de cerveja, estava no que chamam de as traseiras do lixo, entrada escura, que desemboca num aterro, por onde só entra o camião do lixo para evitar manobras complicadas na rua principal.
A noite cerrada e morna já abraçou a rua há cerca de quatro horas. Os três contentores abrem-se silenciosamente. Largam as tampas e, quais tambores de peito, uma sequência de rufos entoa num som grave e estrondoso a que seguem passos em correria desenfreada ao mesmo tempo que se ouvem três badaladas que descem vertiginosamente do cume da igreja e fluem num eco infinito que se repete vezes sem conta pelas secas paredes daquele estreito caminho. A travessa escondia agora um segredo…
(…)
Como tudo acabou? Por agora, como preferirem. De uma forma mais confortável e sonhadora ou num tom mais frio e real.
O que leva vidas às travessas do abandono podem ser nascimentos sem amor, vidas sem paz, vidas com álcool, droga, miséria, insanidade definitiva ou temporária ou, até mesmo, uma sociedade dormente de tão sucessivas pancadas com que nos atordoam no dia-a-dia e que nos fazem perder a consciência do tempo que temos para pensar se fazemos ou não efectivamente parte de tudo isto.
(…)
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
Não abandones. Acolhe.
“A justiça está hoje para a sociedade como as ideias para as empresas: ou rapidamente as põem em prática e se tornam eficientes ou são derrubadas dia após dia.”
Tantos caminhos tortuosos, obscuros e sinistros, que nos dão o conforto demente de recantos espinhosos com perfume de normalidade e disfarçados de segredos inimagináveis, incríveis e, no fim, inacreditáveis.
(…)
Não consigo explicar, àqueles sobre os quais tenho a responsabilidade da educação, as mil medidas de peso que existem nas balanças dos tribunais e que deixam hoje, num prato, corpos cravejados de balas, uma mulher flagelada ou uma criança atormentada, e, no outro disco, o conforto domiciliário disfarçado de prisão, a rua com visitas marcadas à autoridade, o prato de quem é corrupto, o prato de quem mata, enfim, os pratos de quem desenha um crime na sua vida e o partilha com inocentes, aqueles que desvendam a sua obscuridade e que depois, qual casa dos segredos, são libertados para o meio de nós ou para onde lhe for mais confortável.
Quis falar com ela. Pedi-lhe, para uma entrevista, que me dispensasse um pouco de tempo, mas disse-me que não o tinha. Aproveitei no entanto a resposta para lhe perguntar de imediato o que sentia, se a balança lhe pesava mais, se sentia o peso da idade e qual a sua opinião sobre os resultados oriundos das duas decisões mergulhadas em burocracia, jurisprudência e pouca, muito pouca, inocência.
Ouvia-a. Com um ar velho de sábia empertigada, segura de si mas trémula, ergueu olhar e queixo deixando sair um tenor de rouquidão de sussurros misturados com interjeições asmáticas sobre a idade das leis, que mais se assemelhavam a bíblias tão dependentes e viciadas em interpretações que são.
(…) Em tempos gélidos de humanidade mais confiança havia em meu ser, já hoje nada sou, sou o que há, o mais próximo do que pode obter, o mais chegado ao sentimento do conforto que a dor permite, o mais parecido que há de mim, eu, a justiça que sobra hoje.»
(…)
Às gerações vindouras, aos nossos filhos, que o futuro lhes reserve caminhos de bom senso, talvez consigam sobreviver às noites secas e de manhã, quando acordarem dos sonhos que lhes contamos, possam escrever novos destinos, novas leis, talvez possam trazer os filhos da justiça, fortes e jovens, que tanto viram a mãe oscilar. Que tragam às sociedades um novo alento naquilo que hoje chamamos de… “a justiça que temos”.
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
Informa-te. Conhece. Reflecte.
“Foi o melhor momento do dia. Não podia ter começado a manhã melhor, do que com a alegria do Luanda.”
Já era tarde, a luz da lua iluminava de uma forma teimosa as mãos dele, mas os olhos já se deitavam antes dos braços.
(…)
O livro caiu no colo, junto com as mãos calejadas do campo. Amanhã é dia de escola, três quilómetros com paladar a terra húmida, a saborear os beijos da chuva morrinha e morna, com os pés descalços. Já seguia a aventura para aí na página trinta e um, onde Luanda e a jovem Lara já se conheciam graças àquele arco-íris mágico. Lara chamava-lhe o arco da vontade e às cores dava-lhes nomes: atitude, amor, amizade, igualdade, direito, altruísmo e força. Eram amigos há quase quinze folhas. O rapaz bocejou e as pálpebras guardaram finalmente os cintilantes olhos verdes para mais uma noite de sono e sonhos. (…)
Ao abrir a terceira porta do corredor, ouvia-se o silêncio das letras chamarem por quem quer que desse um passo em frente. Uma luz suave do candeeiro de parede, meia-lua de porcelana, acolhia os móveis de cerejeira sem vitrinas. Lado a lado cobriam as quatro paredes, intervalando apenas entre as janelas. A mesa central era quadrada, de dois por dois, apenas ela ali no meio, de madeira negra como a noite. Sustinha-se nas quatro pernas trabalhadas a relevo de formão e martelo de marceneiro, em cima da longa tapeçaria de arraiolos que deslumbrava com as notas suaves que os fios abraçados suspiravam a cada passo.
(…)
Assim que lhe deu o livro, ficou a vê-lo correr sem assistência e aos berros, abanando o livro no ar enquanto corria desajeitado até desparecer para dentro da sala de aula. Sorriu e voltou a entrar na carripana. Foi o melhor momento do dia. Não podia ter começado a manhã melhor, do que com a alegria do Luanda.
Angola, 2011. Quarenta por cento da população não chegou ainda às quinze Primaveras, que mais a Inverno se assemelham. Um país jovem e, como poderíamos concluir, a abarrotar de potencial. Mas não. Um dos países menos desenvolvidos no que toca ao desenvolvimento humano. Um verdadeiro desperdício de futuro da humanidade. Numa terra onde uma biblioteca é um sonho que vem do outro lado do arco-íris, há crianças que têm na sua lista de desejos diários, juntamente com o pedaço de pão e uma peça de roupa, um livro. Um livro. Um conjunto de páginas, uma história, traços em forma de letras para desenhar palavras sobre sonhos e futuro em corações endurecidos, amor em forma silábica com tónicas de melodias graves e agudas que enchem os olhos e entram nos tímpanos directamente ao lago dos sonhos, bem protegido na zona colorida do córtex de uma criança… que possa sonhar.
Um livro. Aquele que não lês há muito, aquele que ficou perdido dos teus tempos de adolescente, esse que já leste e não queres ler mais, o outro, um qualquer de que gostes, tanto que o desejes partilhar. Dar. Dar àqueles olhos, lá, do outro lado do arco-íris, à espera que alguém como eu, tu, nós enfim, desenhemos umas quantas palavras nas brancas páginas que se escondem entre os seus olhos e a contracapa de um coração privado de tanto, tão longe de muito. Em branco. Vamos escrever, escrever naquelas vidas, palavras, de preferência, que à noite lhes deixem adormecer e fiquem a sussurrar histórias, poemas e desejos. Frases de sonhos. Frases de esperança. Para que um dia nos possam conhecer. Para que dia, possam crescer como nós. Como eu. Como tu. Eles, lá, na página seguinte da vida que lês, onde as cores do arco-íris dormem num leve sono, à espera que as acordemos. À espera… que acordemos.
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
“Pergunto-me se não será apenas a ausência de amor sincero e a existência de um egoísmo doentio de quem não sabe nada sobre uma das maiores dádivas da vida: ser pai, ser mãe.”
(…)
Abraços começam num bom dia com um acordar carinhoso e matam o sono, abraços chegam ao início da noite para recarregam energias e matam saudades, abraços deleitam-se ao fim da noite trazendo as estrelas para os lençóis frescos, matam o cansaço numa noite de Verão. Mas há abraços que cobrem um corpo inocente do pior egoísmo humano e matam. Cenários de incógnita e choque que emanam um perfume que nos entra nas entranhas e nos leva ao coração a raiva e indignação.
Basta ler uma notícia assim para que, por breves momentos, a respiração se sustenha. Sentimos uma espécie de confusão no cérebro onde a massa cinzenta procura um resultado lógico para esta equação da vida. Porém, (…)
Amanhã temos de fazer um pouco melhor porque se não tocarmos o tempo a nosso favor certamente ele irá no sentido contrário. E “nosso”, não é o teu tempo, o meu ou o dele: é o nosso.
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
“Amanhã, temos de fazer um pouco melhor do que hoje. Está na altura de, mais de nós, lembrarmos que as mãos tanto servem para agarrar como para dar.”
(…)
De café em café, de esplanada em esplanada, lá estavam dois a quatro lotes de prédios antigos, com três ou quatro andares, e, com janelas e varandas, gradeadas a ferro trabalhado, onde os vasos floridos cantavam mil cores nos ecos da rua. As pupilas turísticas e bocas de arquitectura apreciavam a tão acolhedora e pintada tradição que lhes ladeava o passeio.
Sentei-me na esplanada do primeiro café, definitivamente o mais antigo. Chão de calçada lavada à mangueira, mesas de alumínio com friso preto de plástico, cadeiras a condizer, e, com uma fila de canteiros que simpaticamente delimitavam a sua área de esplanada.
A partir daquele poiso, observava toda aquela rua, uma espécie de planisférios de meio-mundo onde as pessoas deixavam transparecer toda a diversidade que o ser humano tem na sua espécie.
Sentia-se no ar o sabor das torradas a misturar-se com o perfume pobre dos miúdos do bairro e com o brilho amargo das peles dos casacos que ostentavam no café da frente. Eram bem tostadas e estaladiças, em fatias de pão de centeio (…)
(…)
Chamei os putos, pedi-lhes para colocarem os cigarros no cinzeiro.
- Aguardem quietos, o senhor já vos traz tremoços. Mas dos cheios! – E riram em breves segundos.
Olhei mais uma vez os prédios e engoli na alma o soprano encantado de um girassol que sorria aos céus. Nem o velho, nem os vasos, estavam iguais desde que ali tinha comido a minha torrada a primeira vez, hoje de manhã.
O tempo passa a correr.
O ser humano é, de facto, uma diversidade de si mesmo. Em que café vivemos? A verdade é que somos todos donos e clientes de um espaço que toma mil formas, cores e odores, qual camaleão que nos dá, a nós transeuntes das ruas da essência humana, o tapete, assento e temperatura que a nossa atitude decide ter.
A que café vais hoje? O que vais beber? Quem vais convidar à tua mesa?
Enquanto nos mergulhamos neste fingimento que nos toma como alguém que perdeu os sentidos, ou mesmo a vontade de falar a coisa certa, enquanto nos distraímos, dizia, não vemos os vasos do mundo a nos contarem histórias de flores que querem brotar, viver e cantarem cores, cores que nunca vimos, cores novas, outras cores.
As sobras do que somos e fazemos, e que deixamos espalhadas ao vento, caiem num chão agora árido e seco pelo desequilíbrio em que vivemos e que pouco ou nada germina. Os arados estão parados, enferrujados, e os restos, que largamos de nós (que não queremos e que, para nós, não terão valor – até ao momento), ficam à mercê de quem espreita por uma oportunidade de saborear a vida, seja de que forma for. São sobras, são lixo. Umas vezes simplesmente restos, outras veneno. O que desperdiçamos e o que extraviamos, no mundo, tornar-se-á num legado. As gerações mais novas e as vindouras não sabem, mas temos de fazer mais do que simplesmente o suficiente.
Miséria não é equilíbrio. Hoje, temos de fazer mais do que ontem. Amanhã, temos de fazer um pouco melhor do que hoje. Está na altura de, mais de nós, lembrarmos que as mãos tanto servem para agarrar como para dar.
(…)
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
“Porque o tacho estava ali – e passa um emprego –, porque não é sítio para a louça – e faltamos às aulas –, porque até está sujo e devia ter ido para lavar – e lutamos pelo subsídio de desemprego.”
Ri-me que nem um perdido. O ridículo deixa-nos de facto numa sobriedade que deixa o álcool pelas ruas da amargura. Não estou a falar de exemplares artistas de skate contra a mão. Mas, dar uma cabeçada, reparem, na quina da asa de um tacho! Bolas, não lembra a ninguém.
Fica perplexo com as coisas que lhe acontecem e, enquanto se desvanecem e outras passam ao lado, continua a fitar o acontecimento que já lá não está, o erro que não era suposto ter acontecido. Enquanto isso, as oportunidades vão passando. E de quem é a culpa? Claro, do tacho.
Porque o tacho estava ali – e passa um emprego –, porque não é sítio para a louça – e faltamos às aulas –, porque até está sujo e devia ter ido para lavar – e lutamos pelo subsídio de desemprego. O facto é que ele até queria a porra do tacho. Mas não ali. Tinha de ser no sítio certo.
– Mas quem se mexeu afinal? O tacho? – Perguntei.
– Está bem. – disse ele conformado – Tens razão. – assentiu.
Fiquei aliviado por ter incentivado alguém a ir para a cozinha e fazer algo. Passam-se uns segundos de embriagues e de repente, quando pensei que ia sentir o cheiro do refogado de ânimo, senti-me completamente derrubado com a finalização numa composição semântica que daria para o colocar no dicionário e dar-lhe aquele significado:
– Mas se não tivesse asa... nunca lhe tinha acertado na quina. – rematou, olhando desconfiado o lava-louça.
Ah, Portugal!
M.A.
“Enquanto julgamos à mesa que a matamos, ela vai-se contorcendo à volta de corpos inocentes e gritando (…) Que olhais? Não vos mexeis, que não é preciso.”
Perdido. Tento perceber qual o maior assassino de todos. Nas universidades portuguesas temos droga na lanchonete. A culpa dos maus resultados é do excesso das máquinas de calcular ou então dessa, que tem mil cabeças e cospe um ácido pela boca, que nos derrete a vontade de percebermos que o país somos nós e mais ninguém, essa, a quem chamamos de crise. Sim, é a ela que temos de sentar no banco dos réus pelos resultados dessa pouco entendível disciplina onde a raíz quadrada exponencia o insucesso. A droga?... Essa é apenas uma incógnita.
(…)
Ia rodando o planeta quando de repente, ao tirar o pó do globo com o indicador, senti na ponta dos dedos o odor a osso. Fiquei seco e nem a saliva existia nas glândulas. Olhei as letras pequenas (…)
Será que falta muito para qualquer moral perceber que, se não estiver simplesmente a morrer de fome, tem armas suficientes para no dia-a-dia disparar uma acção contra essa homicida? Enquanto julgamos à mesa que a matamos, ela vai-se contorcendo à volta de corpos inocentes e gritando ao mundo num tom irónico e rindo-se da inoperância da humanidade: Que olhais? Não vos mexeis, que não é preciso.
Perdido. Que fazemos nós aqui? Vimos, vemos e vamos? Ou fazemos, de facto, algo? Perdido. Mas vou encontrar-me. Prometo.
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
“O que nos vai deixando descansados, e não nos atira para os trilhos onde se veste um luto sem luz, é que estas coisas só acontecem aos outros… não é?“
Transparente. Sou transparente. Há medida que me empolgo neste lugar quente, formo o rio que me nomeia, o lapso em que me transformo, o sabor que me ateia. Não me conformo.
Agora, que me afirmo, que me sinto libertar, os ponteiros do corpo assinalam a partida. Saí. Com esta multidão de mim, que nasce e que me empurra, não preciso de força para o impulso, o toque para lá da minha aventura.
Começo a cair lentamente a uma velocidade frenética, colada à pele deslizante do teu rosto, salgada, nascida dos teus olhos agora tristes. Essa dor derrapante em que tudo o que toca escorrega, transforma-se numa serra que corta a alma em mil pedaços. E enquanto se despedaça e o medo fecha os panos, eu desço e sinto a história, o sódio que me transmite a memória de cada canto, cada poro, cada nódoa, cada pranto.
Cheguei agora ao lugar por onde inalas a vida, cheiro o sangue coagulado que se esconde nas narinas dessa inocência a proteger a mão assassina do silêncio do grito mudo do não. Se três letras sabem falar um “sim”, já nem a acentuação do til na negação é suficiente para perceber a dor do órgão que bombeia a vida.
“Outra coisa que eu gostava, era de poder jantar salsichas como dantes fazíamos.”
Querida senhora da segurança social e marido (o do banco), eu sou o Pedro, já tenho 6 anos e 7 meses e ainda tenho muita coisa de aprender sobre os grandes, mas já tenho idade suficiente para poder ajudar.
Vinha pedir-vos para, por favor, salvarem a minha família da crise (pelo menos é assim que a minha avô chama a isto). A minha mãe não trabalha e dorme a chorar a noite quase toda na casa de banho. Ela vai para lá para não me acordar nem ao meu pai, mas eu ouço-a.
(…)
Na noite passada, quando fui apagar a televisão grande que ficou acesa na sala, porque o meu pai adormeceu a ver a sport-tv, ao voltar para o quarto vi o meu porquinho. Mas como é que não me lembrei disso antes?! O meu avô bem que já me tinha dito que tinha ali uma fortuna.
Neste envelope, envio-vos todas as notas que tenho. As moedas são pesadas mas como valem pouco e o envelope fica esquisito (…)
Foi criado um protocolo entre a Associação para a Defesa do Consumidor e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa com o intuito de sensibilizar e educar para a gestão das finanças pessoais e para um melhor entendimento da problemática do endividamento, desde os mais jovens até aos pais.
Numa altura em que engolimos diariamente as drogas da crise, são iniciativas como estas que devem partir não só de organismos públicos e privados como das próprias famílias. São estes os melhores fármacos que podemos criar para combater a crise e o consumismo desmesurado que nos infectou durante os últimos anos pelo facto de os nossos pais estarem tão mergulhados em trabalhar para o nosso futuro que não tiveram tempo suficiente para nos avisar sobre o problema. Baixamos as defesas e esta bactéria que em nada tem a ver com rebentos atingiu-nos silenciosamente, incubou como bem quis e agora delicia-se com a nossa queda, aparentemente degenerativa e irreversível.
(…)
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
“perceber que a consequência de desemprego, exclusão, pobreza e fome, afectam a educação e desaguam na rua da violência”
(…)
Há quanto tempo não chegava um carregamento de cálcio. Até que enfim. Talvez se consiga ainda recuperar a terceira costela. O problema maior com que me debato é que não consigo sarar-lhe as contusões a tempo, antes de virem mais impactos daqueles. Farto-me de bombear todos os dias, mas daqui também pouco mais posso fazer, já Deus sabe o que faço.
(…)
Céus, parem com os gritos ossadas! Um, dois… um, dois… um dois… vá miúdo aguenta-te!… Porra! Façam alguma coisa aí em cima, não o deixem desistir. Por favor... Hei, não, outra vez na… - uma pancada localizada nas costas interrompeu o esforço. (…)
(enquanto a adrenalina descia, os pulmões inspiraram fundo acompanhados de três sufocos e a mãe tapava-lhe a ferida com a gaze)
(…)
Estamos em século que não se justifica não se trabalhar de forma interligada, não se justifica não se cruzarem tantos dados espalhados que nos permitam perceber que a consequência de desemprego, exclusão, pobreza e fome, afectam a educação e desaguam na rua da violência. Tanto se investe em transformar dados em informação nas finanças.
Talvez no dia em que uma notícia de maus tratos infantis caia mesmo em cima de eleições, talvez numa altura em que a crise económica deixe de ser brinco nas nossas orelhas, talvez aí, dizia eu, haja tempo para dedicar mais algumas páginas nos cadernos dos programas eleitorais à violência infantil.
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
“Fará sentido termos nas mãos o comando da vida de quem amamos?”
Olhei-o. Tinha um aspecto acabado, resignado ao destino que de uma forma ou de outra o esperava.
Tentei arrancar dele um movimento, sentei-me e fui puxando por ele. Tentou. Tentei. Quando parecia que se ia ouvir algo dali, a força da vida que outrora senti, desistia. O problema já não tinha resolução. Era de facto a altura para tratar - tinha de ser eu - de facilitar o término da vida.
Olhei-o. A cor já não era a mesma, o odor já não era o mesmo, a energia desvaneceu-se. Mas era meu. Só meu.
(…)
Ali, aprende-se a saber esperar, para no fim, simplesmente acabar. Acabar naquele momento em que nós, que cá ficámos, sentimos a dor da estranha mistura entre a tristeza e o alívio, diria, satisfação vestida de compaixão.
Fará sentido termos nas mãos o comando da vida de quem amamos? Desligar não tem volta, é botão que só se usa uma vez. Será que o zapping diário, que comuta interminavelmente sempre no mesmo canal, esperando o fim das baterias, é coisa digna?
Será que temos de aceitar a doença, na vida e até ao fim, com toda a dor que ela nos traga? Será que temos de viver e aceitar esse facto quando podemos unicamente contar, por exemplo, com a visão, o sentido que a única coisa que nos deixa ver nessa fase é aquilo que não somos e que não temos.
Onde está a razão? A questão é que o limiar da verdade do conceito de vontade própria não é algo que se defina numa lei, num texto. Não é algo que se possa dar como certo ou errado. É algo que não se sabe. É algo que se sente.
São estas dúvidas sem resposta certa, são estas respostas sem pergunta, que nos são dirigidas pela vida. Porquê? Porque só nós temos a capacidade de lidar com elas, mal ou bem. Porque só nós nos deleitamos nos dias rasos e nos amarguramos em lua cheia. Porque só nós somos isso… humanos.
É o destino, sofre-se. Mas será preciso?
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
“A não tomada de atitude (…) Não acontece por acaso. Não acontece por não haver tempo. Não acontece, simplesmente isso.”
A estrada não era muito sinuosa e o sol brilhava sem aquecer demasiado. A manhã estava de facto amena e perfeita. Sem querer sentir algum tipo de apreço pelas áreas ardidas, a mistura do castanho com o verde forte, que devolvia aos céus a luz intensa, dava um ar claramente rústico aos montes que desenhavam a paisagem. (…)
Na sala de espera, as duas encostadas uma à outra aguardavam as notícias com uma ansiedade que desgastava cada músculo e cada osso de forma impiedosa. (…) O rapaz entretanto já estava fora de perigo.
As plaquetas viajavam pintando no tubo uma estrada vermelha em direcção à dádiva. A sala era ampla e os tectos altos. O chão sussurrava a desinfecção que o cobria. Cerca de oito batas brancas caminhavam em passadas calmas numa ida e volta às longas cadeiras com reclinação de encosto. As agulhas eram introduzidas com um profissionalismo de invejar: “Vai respirar fundo agora, está bem?”.
O abalo do choque ecoou em forma de sucessivas pancadas tremendamente fortes e a cabeça empurrada violentamente para trás e para a frente enfiou o volante na traqueia enquanto a chapa rasgava as pernas. Numa fracção de segundos (…)
- “Pai?! Que se passa?” – respondeu assustada ao levantar-se repentinamente e levantando os cabelos longos para trás da nuca.
- “Não te vou poder ir buscar. Tive um acidente. Mas…” – foi interrompido pelo pânico dela.
(…)
No fundo do corredor surgiu uma bata verde. As lâmpadas fundidas não deixavam reconhecer o médico. Os corações batiam e as glândulas lacrimais não tinham descanso. Quando as duas quase partiam os ossos das mãos uma da outra, a luz iluminou-lhe a face. (…)
Todos os dias, polícia, bombeiros, INEM e outras entidades entram numa correria constante em direcção a locais de acidente. A estrada é, para os distraídos e para os atentos, uma roleta russa, uns dias mais, outros dias menos. Só a sensibilização e a formação cívica podem diminuir estes números, mas o factor sorte é algo imprevisível. Um acidente é um acidente e, se o é, é porque não podemos evitá-lo. É um acaso. Pode acontecer, pode não acontecer. Não o controlamos de facto.
Enquanto vidas se perdem e outras esperam não se perder, existem as que ainda se encontram. A dádiva de sangue não é um acaso. A não tomada de atitude em relação a esta necessidade, a esta causa, também não. Não acontece por acaso. Não acontece por não haver tempo. Não acontece, simplesmente isso.
No avesso da estrada de asfalto, a estrada da vida tem uma saída para a esperança. Se, por um lado, não podemos evitar sozinhos que sangue se derrame, por outro, podemos equilibrar a balança. Isso não é um acidente. É uma decisão. Somente isso. É a tua decisão.
E tu, o que decides hoje?
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
“De boas intenções está o mundo cheio, dizem. Não me parece. O mundo precisa delas, isso sim.”
(…) Aproximou-se dela e beijou-a. Tocou-lhe como se testasse a sua existência. A dúvida fez-lhe tremer de ponta a ponta e as mãos vazias escorregavam pela luz que a envolvia. A hesitação e o medo eram preliminares obrigatórios. Um momento de mágica utopia, arrepios, fôlegos e amor. Amor incondicionalmente cedido por tornar o dia de amanhã diferente. Com um sorriso a mais. Melhor: dois sorrisos ou mais.
Abraçaram-se e envolveram-se num rodopio de loucura, a pele misturava-se com os lençóis de intenção e o suor de persistência em gotas que brilhavam à luz da vida. O prazer ultrapassava qualquer expectativa e repetiram-no, vezes sem conta, até ela nascer. Perfeita. Não precisavam de mais nada. (…)
(…) De boas intenções está o mundo cheio, dizem. Não me parece. O mundo precisa delas, isso sim. O tempo espalha-se à volta do planeta tentando cobrir toda a vontade que reluz à noite. No brilho da lua, qual pólen que o vento dissemina por campos de girassóis, seres humanos a abarrotar de potencial aguardam um lençol de intenção para agarrarem todo o tempo que lhes resta e mostrarem ao mundo que é a atitude que move a vida.
Hoje vou despejar a minha vontade nos meus sonhos. Vou-me deitar um pouco na intenção e aproveitar o tempo. Amanhã vais ver. Amanhã conto contigo. Amanhã, levo-a a ti. Vais gostar de a conhecer. É fruto do tempo e da vontade, é sumo da intenção. A atitude.
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
“Atracamos há tanto tempo no porto da boa vontade que o ferro das amarras já calcinou.”
Só quem não quer ver é que não vê as costuras nos ombros, os fios que mal prendem os botões do lado de fora e, mais descarado que tudo, os colarinhos para dentro. Completa, óbvia e totalmente do avesso.
Atracamos há tanto tempo no porto da boa vontade que o ferro das amarras já calcinou. Só mesmo cortando deixamos de ficar encalhados num lugar onde supostamente deveríamos apenas estacionar e repousar um pouco para recuperar energias. Se lançamos o machado da vontade e cortamos as amarras, umas quantas braçadas nos remos e ficamos a pedir aos céus que chovam motores ou que uma vaga nos reenvie de novo para junto do molhe. Ficamos à deriva a tentar perceber quem somos, quem queremos ser e, quando lá chegamos, lançamos âncora e esperamos que alguém nos dê como náufragos e nos atire uma bóia. Não admira o hálito a escorbuto dos dias de hoje.
(…)
Uma sociedade que se esconde por detrás de quintas virtuais, novelas e outras séries televisivas. Uma sociedade que não se ouve a si mesma, que não se olha ao espelho, que se abana de tanto querer fazer e não ter quem saiba aproveitar o seu potencial. Uma sociedade autista mas com aquilo que mais tem no seu interior quem o é: auto-estima.
Se os cromossomas estão trocados e enraizados neste corpo de multidão, que se move num caos vinte e quatro horas por dia, porque não há relógio para olharmos para o lado e dar uma palavra? Porque não trocamos um café ou maço de tabaco por um donativo para um sorriso? Tempo?
É falta de tempo com certeza. Quem inventou o dia com vinte e quatro horas não devia ter mais nada que fazer. Pois, tempo. Deve ser por essa razão que se prevê mais de dois milhões de espectadores a seguir um evento essencial para a humanidade e detalhes que podem colocar a vida do planeta em causa. Tenho a certeza que a estimativa será alcançada. Todos vão saber quem foram os convidados, a cor do vestido e quais os ingredientes do bolo da boda real.
(…) E a vontade é uma atitude exponencial. Seja a falta, seja a força dela.
M.A.
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
“Qualquer evento, com vítimas ou não, incidente ou acidente, é suficiente para que no timing certo prolifere um mediatismo – arriscaria dizer, populismo(…)”
A hemofilia da sociedade em que vivemos está latente na ferida da hipocrisia social que teima em não cicatrizar ainda que haja cidadãos que se mostrem interessados em sarar tal assunto que, não obstante, é tomado de assalto pelo oportunismo dos meios de comunicação social e dos partidos políticos em campanha eleitoral.
Louvado seja o repórter que, para compensar tal falta de atenção e humildade por parte dos meios de comunicação e dos nossos quase governantes, fecha um dos próximos noticiários com uma reportagem sobre a vida de pessoas com este diagnóstico.
Tive a oportunidade de ver em primeira mão a reportagem, “Vidas por cicatrizar”, sobre a hemofilia e casos em primeira mão de cidadãos hemofílicos que lutam no dia-a-dia para perceberem que emprego será compatível com tal modo de vida, que não podem esquecer um medicamento fora de mão com o risco de ser fatal.
“É uma história da nossa infância que retratava uma atitude. Da história, tinha-me esquecido. A atitude, conheço desde sempre.”
A noite estava gélida. A soleira era curta e, apesar da gigante porta trabalhada ao estilo Manuelino, a imponência de tal obra de arte não era suficiente para aquecer o corpo, quando muito poderia embriagar a alma.
A distância entre as duas margens da rua era de uns dez metros e apenas um carro se mantinha estacionado do outro lado servindo-lhe de reflexo para a lua que se impunha por detrás do velho prédio que o acolhia à porta.
Dos seis lampiões, três de cada lado e plantados de forma intercalada, apenas um funcionava. Iluminava-o. Ali, sentado, coberto com a manta verde e vermelha, segurava a última caixa de fósforos que lhe faltava negociar. A noite gelava tanto os pensamentos que a caixa já estava bem mais leve do que quando lhe removeu o plástico. Perto dos fósforos queimados, o boné no chão, dava ao brilho das estrelas uma mágica financeira. A economia tinha ali um brilho como hoje não se vê.
(…) Da história, tinha-me esquecido. A atitude, conheço desde sempre. Se sentássemos o nosso país a uma soleira via-mos que o nosso papel não tem sido muito diferente. Temos de aproveitar cada minuto para pensar como podemos fazer a diferença, e o seguinte para fazer a diferença. Se assim não for, vamos queimar todos os cartuchos no sentido errado, no egoísmo ou nas lamentações. Ou nos juntamos agora, ou um dia também morreremos de frio.
Da minha parte, hoje, deixo-vos esta história. Afinal de contas, atento às últimas indicações dos nossos líderes, parece-me que é mesmo isto que é preciso: imaginação.
in "Um momento, por favor…"
(c) 2011 Manuel Almeida
Apoia uma aldeia especial. Nas Aldeias SOS.
“Devíamos ter um espelho, na zona umbilical, que nos fizesse ver mais, que nos fizesse pensar que a vida é muito mais do que o que vemos e ouvimos. É preciso sentir. É importante sentir o próximo(…)”
I
A mensagem
Sentem-se. Limpem as vossas mentes e corações de todos os problemas que tenham e concentrem-se apenas neste. Se tiverem perdido família ou amigos neste inferno, então guardem isso e tudo o que sentem em relação a isso.
“Se, para dentro de casa, é preciso matar para ser condenado, na rua há que consumar para, talvez, não ser ilibado.”
Acaba de sair do turno das 3 da manhã. A noite está gélida, as estruturas da ponte abanam a cada brisa e o metro já não passa a esta hora. O silêncio é agora dono e senhor da ponte.
Por muito que aperte o curto casaco de algodão branco, o frio faz-lhe pensar se amanhã deve voltar a trazer tão curta minissaia. Os tacões fazem ecoar por toda a ponte as passadas que embatem nas chapas que cobrem a margem pedante. Parece mais longa que nos outros dias. Quase meia ponte percorrida e sente os abanões mais fortes e o eco das passadas estranhamente confuso como se tivesse quatro pés. Há passos cada vez mais fortes. Apercebe-se aterrorizada de que não está sozinha. Um arrepio percorre-lhe agora todo o corpo quando se sente compelida a voltar-se. Ainda mal rodou o corpo e uma voz sinistramente simpática sussurra-lhe um olá aterrorizante ao ouvido.
(…)
Além das violações efectivadas, tentativas de violação ocorrem recorrentemente mas, felizmente, não terminando da forma que os prevaricadores mais gostariam. Enquanto os números da economia tomam conta do tempo de antena dos portugueses, as estatísticas do crime já não são assento político para novas eleições e as mulheres, que são vítimas desta velha covardia, continuam a ser não mais do que isso. Os culpados ficam à solta com prova de residência e identidade, terminando no mesmo saco que os senhores da violência doméstica. Lá nisto há coerência. Se, para dentro de casa, é preciso matar para ser condenado, na rua há que consumar para, talvez, não ser ilibado.
A hipocrisia diz que são provocados por elas, as leis dizem, com uma exacta descrição, que não é violação, a justiça coloca-os como inocentes e fabrica pulseiras. Para mim? Para mim, eu chamo-lhes ratos de esgoto.
M.A.
Por favor, não se choquem com as hipóteses que a imaginação de tais criminosos pode fazer com algumas leis…
in Diário da República, 1.ª série — N.º 170 — 4 de Setembro de 2007 6227
« CAPÍTULO V
Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual
SECÇÃO I
Crimes contra a liberdade sexual
Artigo 163.º
Coacção sexual
1 — Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 — Quem, por meio não compreendido no número anterior e abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando -se de temor que causou, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar acto sexual de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até dois anos.
Artigo 164.º
Violação
1 — Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos; é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 — Quem, por meio não compreendido no número anterior e abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando -se de temor que causou, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos; é punido com pena de prisão até três anos »
“Durante este mês decorre o Festival do Chocolate em terra de Óbidos. Os visitantes mais esperados são as crianças(…) Será que lhes vão contar a história toda? E tu?”
E inferem-nos uma pausa. Um momento de prazer a saborear.
Se tivesse memória, a prata envolvente estaria manchada de vergonha e o perfume adocicado azedaria em contacto com o olhar guloso de quem sabe mas não quer saber. A saliva, segregada ao toque, faria vomitar ignorância num grito gregoriano que ecoaria pelo silêncio da Europa. Mesmo que tentássemos insistir, a cada luxuosa mordidela, seríamos assaltados por alucinações de tráfico infantil, raptos, choro e gritos de dor. Sentiríamos que levemente trincávamos a inocência de uma criança, a cada quadradinho devorado.
“A tendência para fazer tudo mais rápido arrebatou a vontade de ter tudo a uma velocidade frenética e à mão de semear.”
Arranjava-se uma dessas embalagens próprias, ou não, e deixava-se uns minutos às voltas e voltas no prato interior. Na tigela, derretia o rolo de papel enlaçado com a fita da cor do curso no qual se investiu uns bons anos de vida. Esperávamos que, no fim do tempo assinalado pelo som intermitente, a tecnologia tivesse rapidamente transformado e colocado na tigela uma vida estável, um bom emprego, poucas preocupações e que de sacrifícios nos ficássemos pelo trânsito das ruas no caminho de ida e volta para o trabalho – perdão – para o emprego.
Pois é. Cantávamos que nem galos.
Alguém enganou alguém e esta tecnologia maravilhosa tinha os seus quês.
A caixa do correio estava vazia. De qualquer forma abri, é quase um vício, e retirei a pequena mensagem verde, que estava colada ao fundo pela pouca chuva que entrou: “Pedro, desempregado, disponível para pinturas tectos e paredes. Tmv. 931211011”.
Jantei e sentei-me a escrever. A cabeça pesava e os olhos faziam a imagem do monitor intermitente. O papel colado no placar, e pensava no Pedro…
A manhã daquele 12 de Março evaporava já o orvalho da madrugada quando poucas dezenas de jovens já davam o aroma a revolta às ruas da praça. Cartazes, pinturas faciais, t-shirts à
Será, a vingança, a verdadeira e prática reflexão dos direitos humanos num cenário de guerra?
Quando alguém grita bem alto, é bom que aqueles que é suposto reagirem, reajam.
Estou cansado. Hoje sinto-me como ele. Não sabe, mas eu vejo-o daqui. Mas cansado ou não, sinto o compromisso da mensagem. É dele que falarei hoje, então.
É a esquizofrenia dos conceitos de vontade e tempo. O acto de nos voluntariarmos para ajudar está intransigentemente ligado à quantidade de tempo que temos de saldo no balanço das nossas ocupações. Não ajudas, logo não tens tempo.
Uma vez convenceram-me a não o fazer. Desta vez não. Desta vez eu escrevo. Porquê esconder o que nos indigna e o que nos revolta? Se para alguns é o texto errado, paciência. Afinal de contas, errar é humano. Errar é humano… se bem que, no fim do que tenho para escrever, fique com algumas dúvidas disso.
“Talvez um dia, no pouco tempo que resta das vinte e quatro horas que passamos em redor de nós mesmos, consigamos atingir a outra dimensão e ver mais. Não me refiro à dimensão daqueles que já partiram, mas sim daqueles que ainda cá estão(…)”
Ano europeu do voluntariado. Foi uma campanha de uma logística interminável que se suportava num orçamento que continha, no lado do activo, a rubrica, entre várias, relativa a donativos. Embora não aderindo às novas tecnologias para a obtenção de fãs, podemos comparar o sistema de angariação à nova técnica de campanhas que se usam na rede social Facebook para angariar a solidariedade à distância de um clique no botão «Eu gosto». Neste caso são meros boletins através dos quais cada cidadão pode aderir à causa admitindo um “Eu gosto”.
Mentes brilhantes juntam-se para estudar o fenómeno da pobreza no mundo. Prémios Nobel da economia e da paz, em conjunto com os melhores sociólogos do mundo, concluíram que existem milhões de orçamentos familiares com rupturas que não fazem qualquer sentido, com rubricas totalmente desnecessárias ou com valores perfeitamente redutíveis.
Qualquer história que se preze necessita preencher nos seus primeiros parágrafos um conjunto de respostas que nos situam no tempo e no lugar, transmitem-nos o ambiente e as sensações que necessitamos para nos transportarmos para dentro do texto, para dentro da vida. Hoje talvez não.
Poderá ser o novo plug-in que os jogadores de CityVille terão acesso por apenas 5 euros. Se for jogador registado do FarmVille poderá aceder às suas quintas, a partir das periferias da cidade, e assim também ter acesso à instalação deste novo Plug-in: o PoorVille. Tal como se percebe, não é mais que um novo conceito de pobreza na sua dimensão digital denominada por e-Poverty.
“Acreditem(...) Para lá dos números há muitos mais. Há quem tenha apenas o tamanho de casas decimais.”
Foi uma luz repentina que senti nas pálpebras. Quando o frio me tocou a pele só me apetecia gritar. Gritei, gritei até não poder mais. Mal conseguia respirar quando me enfiaram aquele tubo nas narinas como quem desentope um cano. Tinha jeito a doutora. Depois da confusão senti o calor do teu abraço materno. A tua voz era inconfundível e o teu cheiro… perfume de Mãe.
Ainda sinto a ignorância, o medo de não saber, a inocência de me culpar por tudo aquilo que não entendo. Foi quando me pousaste. Onde ias tu mulher? Onde foste? Porque me deixaste? Que fiz eu? Desculpa. Desculpa-me. Por muito força que os feixes de sol fizessem em ultrapassar as persianas, deitavam-se perante o nada que assolava o meu coração. Estava vazio e desprotegido. Poucas voltas deram os ponteiros assim que nasci e já te tinha perdido. Que descuidado que fui. Era uma folha solta à espera de ser escrita.
“Um minuto analgésico para alguém, o desenho de um sorriso na boca de uma criança”
Tão confusos que estamos. Problemas que transbordam mente e coração, começam na ponta de uma assoalhada e atravessam a rua. Deslizam sob a ponte onde, a intermitência do lampião, esconde a fome coberta pelo jornal de ontem. Essa brisa gélida, que atravessa o mundo e toca em corpos desnutridos, ecoa em forma de grito. Da noite faz-se dia quando do dia se faz noite. É a magia do fuso horário que não consegue fazer, apesar de tudo, um segundo de terror voltar a trás, seja qual for o hemisfério.